Atlanta (FX Networks, 2016-); Criação: Donald Glover; Direção: Hiro Murai, Donald Glover, Janicza Bravo; Roteiro: Donald Glover, Stephen Glover, Stefani Robinson, Jamal Olori; Elenco: Donald Glover, Brian Tyree Henry, Lakeith Stanfield, Zazie Beetz, Harold House Moore, Cranston Johnson, Emmett Hunter, Cassandra Freeman, Tim McAdams, Jane Adams, Freddie Kuguru, Alano Miller, Aubin Wise, Austin Crute, Paloma Guzmán; Número de Episódios: 10 episódios; Data de Lançamento: 06 de Setembro a 01 de Novembro de 2016;
O texto contém spoilers.
Donald Glover, antes de ser conhecido como Lando Calrissian, e julgado pela reputação positiva ou negativa que tal papel o trará, e para além do músico Childish Gambino e o Troy Barnes de Community, deve ser reconhecido como o criador de Atlanta. Série da FX Networks que chega preenchendo um espaço que já parecia lhe pertencer, mas, recheada de méritos, deixa sua marca com louvores.
Algo que acontece desde os promos da série, que em seu funcionamento parecem representar um caminho contra a corrente que se vem gerando. Como se seus personagens tentassem caminhar, seguindo em frente, contra um mundo que os tenta puxar para trás. Nada de retroceder, Donald Glover e sua série parecem nos dizer.
Porém, mais do que uma toada contra a corrente, Atlanta é a afirmação de uma realidade através de uma linguagem própria, utilizando sua própria cultura de maneira inteligente para debater questões sociais e econômicas e as consequências exercidas sobre a comunidade afro-americana.
O que faz já na própria demonstração de ser uma parte atuante do cotidiano, no caso norte-americano, mas que figura como um lugar comum num incomum conhecido. E aqui residem dois grandes méritos de Atlanta, porque seu pleno funcionamento se dá pelo ótimo ritmo em que se desenvolve e pela simplicidade com a qual nos faz assimilar suas peculiaridades.
O que é potencializado pelo consciente balanço entre a comédia –Atlanta parece majoritariamente conduzida pelo bom humor- e o drama. Contudo, geralmente numa tentativa de gerar reflexão conjunta de ambas as facetas, rendendo algo que abrange a todos com sinceridade e sagacidade.
Como resultado temos, por exemplo, o sétimo episódio, intitulado B.A.N., que se refere a sigla Black American Network (em português Rede Americana Negra). Ao mesmo tempo em que serve como uma completa sátira, até metalinguística, o episódio, a rede televisa fictícia e sua programação constroem um debate que funciona em diversos níveis.
O funcionamento desse episódio, no entanto, precisa ser trabalhado de maneira crucial, porque é um humor deveras específico. E eis aqui parte da peculiaridade de Atlanta, que, no episódio seguinte a esta sátira, se encerra com um tiroteio e um carro invisível atropelando a multidão à sua frente.
Assim Atlanta se revela dona de uma narrativa que, não só é mais inventiva do que o esperado, mas que vai muito além em termos de restrições, pois não se vê satisfeita com contenções impostas regularmente. Não que seja uma revolução na linguagem cinematográfica/televisiva, longe disso. O que acontece é que Atlanta é tão segura e proprietária de si, e daquilo que tem a oferecer, que busca por uma voz singular.
Parte da possibilidade de se aceitar o que há de incomum com a narrativa é o que há de comum na narrativa, mas que aqui é trabalhado de forma memorável, com tal delicadeza e sensibilidade que se gera uma aproximação do espectador com Atlanta. O que é algo que acontece pela sinceridade com a qual a série de Donald Glover encara seu público e si própria.
Lakeith Stanfield, ainda que não muito conhecido, é um nome que vem se firmando, algo que merece acontecer visto seu talento. Em Atlanta seu personagem, Darius, parece sintetizar tudo o que ocorre ao seu redor, na narrativa da série em si. Recheado de devaneios filosóficos e uma aparente sabedoria, o personagem exprime uma ambiguidade (positiva) semelhante ao todo em Atlanta.
Todavia, o importante de citar o ator não está só nessa ambiguidade que ele representa, mas na cena que ele nos proporciona no final do quarto episódio. Dentre os muitos momentos que Atlanta deixa na memória, o mais sensível e, consequentemente, também o mais emocionante, está naqueles segundos finais após o fim das barganhas que Darius realiza na tentativa de ajudar Earn, personagem de Donald Glover.
A beleza da cena se dá de maneira não só visual, se apresentando como um momento integral na trama e no desenvolvimento de ambos os personagens. Porém, ali o que se exacerba é o emocional, e aí Atlanta se confirma como uma força atuante mais próxima do público a cada episódio.
Porque a criação de Donald Glover se mostra eficaz numa abordagem da economia e na exploração dos papéis que representamos na sociedade. Os personagens de Atlanta têm noção, ou aprendem a ter, de como funciona a visão social sobre eles, o que se espera deles. Preconceitos e pré-conceitos, coisas que Atlanta ligeiramente utiliza para subverter expectativas.
Se o cúmulo se dá no sétimo episódio, antes mesmo já temos uma visão disso, na ida de Darius à um estande de tiro, e a lógica dos locais que, antes de o colocarem numa enorme encruzilhada, o expulsam de lá de forma incoerente. Mas se há uma crítica não tão sutil com a alocação do personagem numa “América” conservadora, e ignorante, o restante faz questão de subverter diversos pensamentos.
Aí somos apresentados para um Justin Bieber afro-americano, interpretado por Austin Crute, que faz uma sutil, ainda que ferrenha, crítica ao estrelato. No entanto, tal conceito ecoa mais em Paperboi (Brian Tyree Henry), que acaba se vendo preso numa bolha de percepção, da qual parece ostentar seu passado, mesmo a contragosto. Com o decorrer da série, porém, Paperboi parece compreender que pode e deve usar isso a seu favor, como lhe indica uma jornalista.
Parcialmente um pensamento melancólico, e também uma realidade. Porque ali Atlanta não tenta fugir, mas sim assumir uma responsabilidade de expor como certas figuras parecem precisar desempenhar determinados papéis. Subvertendo tal ideia ao demonstrar que, por esses preceitos, muitos fazem um uso direcionado de tal injustiça (ou desigualdade).
Só que Atlanta quer exemplificar, de maneira nada didática, como esses preceitos sociais estabelecidos são imparciais. Eis, então, o penúltimo episódio da temporada, Juneteenth. Numa realidade que é completamente diferente de tudo o que vimos na série até então, mas que acaba por deslocar, com sentido, Earn e Vanessa (Zazie Beetz, de Easy), mãe de sua filha.
Coloca em choque os dois personagens e gera uma reflexão sobre suas vidas, que leva a uma conclusão da própria relação dos dois. Afinal, Vanessa é a mãe da filha de Earn, mas não sua esposa e nem namorada. Eles são, até então, parceiros que ainda tentam descobrir a melhor maneira de fazer tal parceria funcionar. Até que descobrem.
O décimo episódio, portanto, serve como um epilogo em Atlanta, num ritmo diferente, num clima que se faz estranho aos próprios personagens. A calmaria que assusta Paperboi, com o subsequente susto real, mostra que estamos num rumo diferente agora, mas ainda dentro da mesma realidade.
É o desenvolvimento da narrativa que se faz valer, evidenciando como os personagens cresceram, em seus próprios e nos nossos conceitos. Acima de tudo, porém, Atlanta nos dá a oportunidade de assimilar as razões pelas quais veio para ficar. E é memorável com o faz. Nos fazendo ansiar pelos próximos passos de Earn numa jornada que, de certa maneira, nós mesmos acabamos nos encontrando.
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