Todas as Mulheres do Mundo (Globoplay, 2021); Criada por: Jorge Furtado; Direção: Ricardo Spencer, Renata Porto d’Ave; Roteiro: Jorge Furtado, Janaína Fischer; Elenco: Emílio Dantas, Sophie Charlotte, Martha Nowill, Matheus Nachtergaele, Fernanda Torres, Lilia Cabral, Maria Ribeiro, Fábio Assunção, Felipe Camargo, Maeve Jinkings; Número de Episódios: 12 episódios; Data de Lançamento: 23 de Abril de 2020;
A Globo ainda não conseguiu traduzir o seu sucesso das novelas para o formato seriado. Seja por hábitos de consumo a projetos mal articulados, a Vênus Platinada tenta se podar para enfrentar de forma mais firme a sua real concorrência: Os streamings estrangeiros. De fato, os produtos originais do Globoplay são as melhores séries brasileiras nesse mercado, mas ainda precisam chegar ao patamar de lutar contra as produções norte-americanas. Um caso muito particular é “Todas as Mulheres do Mundo“, baseada em uma das comédias românticas da ala urbana do cinema novo e objeto da pauta nas redes sociais toda terça feira.
Sendo posta para passar junto com um dos maiores sucessos da emissora na semana, a eliminação no Big Brother Brasil, a série começou a chamar a atenção daqueles que não desligam a televisão durante seus comentários no programa que acabou de terminar. Basta ouvir os diálogos para perceber que há algo muito particular no roteiro escrito por Jorge Furtado. Por que ela é uma releitura muito estranha do produto original. Enquanto os anos 60 refletiam sobre um padrão masculino dominante com certo deboche, a versão de 2021 endossa.
O cerne da trama é quase o mesmo: Paulo ama Maria Alice mas sofre com a ideia de “abrir mão” de potenciais relacionamentos com outras mulheres. O protagonista original era um típico malandro carioca cujo flerte parecia alheio à sua vontade, uma condição imposta pelo meio. Em uma das cenas, por exemplo, 3 mulheres são atraídas por ele de forma quase magnética. Diversas cenas tratam essa “fraqueza” dele por uma ótica do ridículo, uma tentativa tão evidente de dar a volta sob aquela que diz amar. Já a versão moderna, trata isso como um tom tão díspar que põe o título de releitura, e não remake.
O Paulo de 2021, além de não ser engraçado, é um arquétipo muito recente: O homem desconstruído. Ele usa óculos, fala em tom de poesia até para ir ao banheiro, tem diálogos surreais com Laura e Cabral (personagens que existem na trama original mas em um protagonismo de rodapé) sobre Kant, Nietzsche e Platão sobre o amor. E no final das coisas, tudo parece um grande floreio para justificar algo tão banal quanto atração sexual por alguém, um dos fatores fascinantes da empreitada do consagrado cineasta. Todo o ridículo fica ainda mais claro no episódio em que o personagem começa a ter ciúmes da mãe, uma infantilidade levada ao pé da letra com uma honestidade digna da farsa.
Mas o que seria do protagonista sem a musa Maria Alice, onde fica ainda mais claro a diferente abordagem. No clássico, Maria Alice é como Anna Karina, uma ícone daquele cotidiano sessentista cujo maior charme está no quão comum ela é, sendo assim tangível de existir fora das telas. Já Sophie Charlotte interpreta uma versão quase divina da personagem, onde tudo que é dito soa como uma parábola mitológica e é filmado com veneração de uma propaganda da Boticário, com luzes que a destaca do cenário de tal forma que ambos nem pareçam estar no mesmo plano astral. Leila Diniz, provavelmente, possui mais falas e maior leque de emoções a explorar com apenas 90 minutos de filme que a sua sucessora.
Deve ser dito que o original é inadequado para a conjuntura social atual. Como obra dos anos 60 que é, ainda mais 1969 sendo um dos engates reacionários da ditadura militar, ela possui uma tênue linha entre progressismo para sua época e conservador para os tempos de hoje. Por mais que haja um diálogo que deixe subentendido que o protagonista tenha tido experiências homoafetivas, ainda há um endossamento à misoginia em toda a relação dos dois. Ainda assim, o relacionamento de implicações sociais problemáticas ainda possui um apelo maior do que a sua versão progressista.
Mas é impressionante como as duas versões causem um certo fascínio que fisgam, mesmo que por motivos diferentes. A série é tão caótica na sua organização, tudo acontece tão rápido que é até difícil de processar o que está de fato ocorrendo em tela. Em um dos episódios, Paulo e Maria Alice se casam, entram em crise e entram na poligamia em questão de minutos. Enquanto o original destina mais da metade do seu tempo ao dia em que Maria Alice viaja e Paulo se vê tentado a trair, pelo puro simples fato de não estar com ela. Para o original, Paulo é imaturo a ponto de não precisar de uma crise para quebrar o relacionamento. Como uma criança sob a vigilância de um adulto, basta alguns minutos de desligamento para que algo ocorra. Enquanto um tem a esquizofrenia de um filme dos irmãos Safdie (“Bom Comportamento“), o outro parece uma comédia do Rohmer.
Na síntese, é como se trata as poesias de Paulo. Enquanto Maria Alice as chama de ruins nos anos 60, Jorge Furtado parece fascinado por elas a ponto de fazerem dela a essência da série inteira. Cada episódio se tornando uma grande construção poética para os arquétipos femininos que esbarram com o personagem. Esqueçam a comédia romântica sobre duas pessoas completamente diferentes moldando suas vontades em prol de um relacionamento, Paulo e Maria Alice são milleniums agora. Entregues ao completo impulso e atração que seus instintos: o puro suco de Bauman.