Assunto de Família (Manbiki Kazoku, 2018); Direção: Kore-eda Hirokazu; Roteiro: Kore-eda Hirokazu; Elenco: Lily Franky, Sakura Ando, Mayu Matsuoka, Kairi Jō, Miyu Sasaki, Kirin Kiki; Duração: 121 minutos; Gênero: Drama; Produção: Matsuzaki Kaoru, Yose Akihiko, Taguchi Hijiri; País: Japão; Distribuição: Imovision; Estreia no Brasil: 10 de Janeiro de 2019;
É arrebatadora a maneira na qual “Assunto de Família” parece se moldar organicamente aos seus protagonistas, afinal, o que parece a princípio uma certeza estilística se torna, aos poucos, uma multifacetada narrativa que acumula diferentes pontos de vista e ruma em frente, colhendo essas experiências pelas quais os personagens passam e como as afetam, o que, consequentemente, afeta ao próprio filme em si. Kore-eda Hirokazu apresenta aqui uma unidade cinematográfica que parece ter vida própria dado o absurdo sucesso com o que consegue fazer funcionar conjuntamente todos os elementos de seu filme, culminando em uma tocante história que se faz inquietante na mente de seu público.
Não é surpresa para os que conhecem a filmografia do cineasta, um dos autores mais singulares em atividade desde meados dos anos 90. Aqui é o filme onde parecem se cruzar da maneira mais arrojada temas explorados por toda uma carreira, ou grande maioria deles. Com arroubos de um olhar que se especializou em ressaltar a beleza da simplicidade cotidiana e da dinâmica nipônica familiar e tradicional. Características que se fazem tão fortes aqui que, por isso mesmo, tornam o filme numa grande obra, quando Kore-eda também as confronta com firmeza e projeta dúvidas sobre o que se tem como verdade.
“Assunto de Família” fala, obviamente, sobre a dinâmica do núcleo familiar, mas nas entrelinhas há muito mais sendo dito, como quando contrasta, por exemplo, um terreno vazio e aparentemente abandonado em meio a prédios, elemento também citado anteriormente no filme. Toda a miséria pela qual passa a família também contrasta com esse processo de gentrificação que marginaliza os mais humildes sem qualquer contra medida e com toda a voracidade possível, indiferente a quem está a sua frente. Vale notar, também, como a família em questão, em toda sua simplicidade e escassez, está rodeada de produtos importados, até a brasileira Penalty marca presença.
É nesse cenário que, aos poucos, laços vão se fortificando. Alguns que, dadas as amostras, a princípio parecem não dizer muito, mas que, por fim, podem significar muito mais do que aparentam. É como Kore-eda vai construindo as camadas do seu filme, no qual um grupo de pessoas que vive em conjunto coloca em xeque convenções tradicionais não porque é progressista, mas pelo peso que se dá a palavras não proferidas. Tratam-se quase como estranhos porque não se assumem como familiares, por temer o peso que um título nominal confere a essas relações e a responsabilidade que representam.
Contudo, isso já está assumido de maneira indireta no que fica implícito entre os personagens de Kore-eda. Logicamente que é a aceitação disto que vai sendo trabalhada ao longo de “Assunto de Família”, porém, é a sensibilidade a qual o cineasta é capaz de conjurar que se faz uma das virtudes que o filme pode clamar possuir como poucos conseguem. O abraço acalentador de uma figura materna, que ensina o que é amor num gesto que vai além do tato e engloba a compreensão, resultando no primeiro encontro de alguém com lágrimas de alegria, é um dos mais carinhosos que o espectador pode ter.
Muito por conta do quanto Kore-eda consegue extrair de seu elenco, todo irretocável, em um trabalho conjunto encantador, onde todos os atores estão bem e são capazes de entregar necessariamente o que é preciso para que se toque o espectador. Assim, o laço familiar que se fortifica ao longo do filme passa a ser não apenas entre os personagens, mas com quem assiste ao filme. A união cada vez mais forte também cobra seu preço, pois a despedida requer um esforço no qual é preciso encontrar forças onde não mais existe alguma, seja no público, seja nos personagens.
Todos os atores têm seus momentos para brilhar, e o fazem muito bem, mas quem toma para si o protagonismo é Sakura Andô, e Kore-eda parece compreender que é preciso lhe dar licença para que ela continue a fazer isso. Assim, é importante notar como a narrativa vai parecer caminhar com as mudanças pela qual a própria personagem passa, inclusive mudanças estéticas no filme. A atriz acaba assumindo seu papel naquela família de maneira tão visceral que acolhe em si todos e tudo que ali estão, e resiste. Andô faz de sua personagem uma fortaleza, faz de sua personagem uma de extrema beleza, sem concessões a conivências tradicionalistas.
Assim, fica claro ao final de “Assunto de Família” a felicidade com a qual foi feita a tradução do título para o lançamento no Brasil, ousaria dizer que até mais contundente que sua versão original, mas fica o benefício da dúvida. A verdade é que o filme de Kore-eda Hirokazu é uma das grandes obras a estrear neste ano, sendo um trabalho de sensibilidade incomparável e que reserva surpresas que vão gerar questionamentos passíveis de se revisitar uma obra que possuí em seus detalhes toda uma riqueza que constrói sua grandiosidade.
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