Autor da arte do cartaz oficial da 40ª Mostra São Paulo, o realizador Marco Bellochio foi eleito vencedor do Prêmio Leon Cakoff, honraria máxima da Mostra. Além disso, o diretor italiano ganhou uma retrospectiva com doze de seus longas-metragens sendo exibidos. Dentre eles, o recente Belos Sonhos, inédito ainda no Brasil.
É interessante perceber que ao longo de sua carreira, Bellochio permaneceu sempre voltado a fazer um cinema político e crítico para com a sociedade italiana, considerando-a cumplice dos dilemas morais políticos sofridos pela Itália, seja a ascensão de Mussolini e o Fascismo ou o fracasso do processo de redemocratização do país, consolidando a hegemonia política de Silvio Berluscone. Além disso, a obra do diretor disserta sobre a influência do catolicismo na composição político-social do país, condenando sobretudo a conivência da Igreja com o fascismo e outros males.
Marco Bellochio usa sua própria vivência pessoal para construir seu Cinema. Nascido em uma família burguesa, estudou em colégio católico, sendo considerado como rebelde pelos padres que lecionavam. Abandonou a Itália para estudar cinema em Londres, retornando após quase 7 anos, iniciando sua carreira com seu primeiro longa: ‘I Pugni In Tasca’ ou “De Punhos Cerrados”, em 1965. O longa em questão, ao meu ver, é seu maior triunfo como realizador, pois sintetiza a hipocrisia da sociedade italiana no pós-guerra, em pleno processo de redemocratização. O diretor se inspirou livre e diretamente em sua família para compor a narrativa, tendo justamente uma família burguesa como síntese das questões do país: Tradicionalismo, pátria, propriedade, Estado democrático… O mais genial do longa é que, aos 26 anos, Bellochio dispara contra aquela Itália que repudia, contra sua própria família, sobretudo contra si mesmo como cidadão político italiano. Todos são hipócritas e responsáveis pelo processo de decadência italiana. Caso não se livrasse dessas amarras, dificilmente a nação conseguiria se reerguer. Estava certo.
‘La Cina è vicina’ ou “A China Está Próxima” de 1967, foi seu segundo longa, quase uma continuação de seu filme anterior. Permanece demonstrando a cadência da família tradicional italiana e seus dogmas arcaicos. No entanto, demonstra sua decepção com o partido socialista italiano, praticando hábitos arcaicos no modo de fazer política e adulando setores ideologicamente avessos aos ideias socialistas.
Mesmo na maturidade, Bellochio continuou com suas narrativas políticas, deixando evidente ao espectador duas convicções ideológicas, entretanto jamais demonstrando cegueira diante dos erros da esquerda italiana, entre eles o radicalismo de grupos extremistas de guerrilha. É nessa perspectiva que se dá ‘Buongiorno, Notte’/ Bom dia, Noite (2003), abordando o caso Aldo Moro, que foi première italiano cinco vezes e presidente do partido Democracia Cristã, tendo sido sequestrado pela Brigada Vermelha, ficando 55 dias em cativeiro. Após o episódio, entretanto, o movimento paramilitar rachou. O diretor faz um retrato tu, analítico e consciente, não servindo de um extrato condenatório, contudo não é indulgente. Talvez seja um de seus longas mais sensíveis e dolorosos, sobretudo aos que se identifiquem com a esquerda.
Em ‘Vincere’ (2008), o diretor tem a missão difícil de construir uma narrativa a base da a biografia de Benito Mussolini, abordando sua ascensão desde os primórdios tempos de militância socialista, afrontando o catolicismo, encantando seus seguidores. Ida Dalser era uma de suas seguidoras, se apaixonando perdidamente por ele, não percebendo os perigos do fascismo pregado por ele, sendo refletindo aos poucos na forma de lidar na relação com ela. O mais instigante no filme é mostrar como o fascismo se embreou no nacionalismo de esquerda, na ideia que a Itália deveria se defender na primeira guerra e mostrar sua “cara”. Logo após a vitória dos aliados, os italianos aplaudiram Mussolini, o considerando mais apto para comandar o país no novo processo. Bellochio, portanto, mostra que o ditador apenas ascendeu pelo aval da sociedade, pelo fato desta ter apoiado seu discurso em prol da guerra, não perdoa nem mesmo Ida Dalser, mesmo humanizando-a e condenando as barbaridades sofridas na sua vida.
Por fim, faço questão de salientar sobre “Bella Addormentata” ou “A Bela que Dorme” (2012), obra no qual o diretor usa o caso Eluana Englaro, vítima de um acidente de carro, tendo ficado em estado vegetativo persistente. Sua família então entrou na justiça para conseguir o direito a eutanásia, iniciando um grande embate judicial, provocando debate na sociedade. Bellochio usa o caso para denunciar os males da influência da religião na composição da moral de uma sociedade, além de expor o fato das lideranças religiosas não praticarem privadamente aquilo que pregam publicamente. Além disso, há uma alegoria clara de demonstrar como a Itália vive em estado vegetativo permanente devido a hegemonia de Silvio Berlusconi, político que lidera o país mesmo não estando no poder.
Marco Bellochio é um cineasta que trabalha em prol da construção de um Cinema italiano político sólido e potente, sendo sua carreira um grande grito artístico em prol da libertação da Itália. Livre de fascismo, falsos moralismos, corrupção e lideranças hipócritas. Pode ainda não ter surtido um efeito prático na vida político e partidária da nação, contudo é um cineasta que ainda acredita na Itália, sem ufanismo. Ao mesmo tempo que acredita na esquerda, sem cegueira. É um mestre da sétima arte, mesmo rumando aos 90 anos de idade, mostra ter um discurso atual e urgente, não só sobre as questões regionais de seu país, serve também referente aos demais países. E em tempos tão conturbados, sua obra cai como uma luva em expressar a situação brasileira.
Sua arte feita para o cartaz oficial da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo enfatiza clima de protestos e revelia, contra os poderosos padres católicos e chefes de governo corruptos, é o clamor das ruas que deve mover um país e não a ideia de uma moral superior regedora dos governos. No Brasil de hoje, há ocupações em escolas contrário aos desmandos de um governo nascido decorrente de um processo arbitrário e ilegítimo, muitos setores protestam e clamam por democracia, representatividade e legalidade. Nada mais atual, portanto, de abraçarmos alguém como Marco Bellochio, um cineasta que conclama a insubordinação em prol da liberdade – e existe princípio mais universal que este? – em uma obra nada mais do que necessária para nós.