Elle, Paul Verhoeven (2016)

O Cinema de Verhoeven sempre foi transgressor, abordando temáticas polêmicas perturbadores na forma de fetiche. Alguns consideram de péssimo gosto, outros acham doente mesmo. Não entrando nesse mérito, podemos definir sua marca cinematográfica como bastante ousada e “livre” de qualquer amarra do politicamente correto. Aliás, quanto mais chocante mais Verhoeven é, na sua síntese. É reafirmando esse padrão que o cineasta retorna sua carreira com “Elle”, um drama psicológico sobre uma mulher sexagenária vítima de violência sexual em sua própria casa. Esse é o princípio da narrativa, contudo foge de todas as ideias convencionais de contar essa estória, num texto subversivo, denso e muito vasto.

O maior mérito se dá pela interpretação sublime de Isabelle Huppert, interprete de Michelle Leblac, uma executiva dona de uma empresa de jogos digitais. Mesmo sendo vítima da violência, não se abala tenta levar a vida normalmente. Entretanto, enquanto seus traumas vão sendo expostos aos poucos, ela precisa tomar forças para lidar com seus demônios pessoais. Huppert dá uma profundidade arrebatadora na protagonista, consegue gerar empatia e humanização, ao mesmo tempo, não a torna vítima banal das tragédias que a cercam. A personagem usa sua sexualidade para se afirmar perante seu meio, de forma patológica, foge de recursos apelativos e convencionais para isso, entregando uma construção de personagem sólida e concisa do início ao fim. Michelle ou ‘Elle’ redefine o sentido de anti-heroína, de forma vigorosa, inventiva e hipnotizante.

A direção também tem papel decisivo na forma de desenvolver sua narrativa até seu derradeira ato final, elevando como experiência totalmente eletrizante e marcante, ainda que perturbadora. O anseio do diretor em chocar por não se limitar e nem temer na forma na qual aborda uma temática tão pesada quanto a da violência sexual contra a mulher é questionável e deve gerar bastante discussão, sobretudo vindo dos movimentos feministas que devem repudiar a narrativa com veemência, não deixo de tirar sua razão, pois há muito a se problematizar no longa – metragem, inclusive acredito ser um dos desejos do diretor, instigar o público ao incômodo, ao debate e ao embate.

É uma experiência cinematográfica nem um pouco convencional, fazia bastante tempo que não se via um filme tão vigoroso assim, usando uma mulher de 60 anos como fonte de erotismo, fetichismo e sexualidade. Sem didatismo ou banalidade. Cinema audacioso e transgressor em sua plenitude, gerando um leque de especulações e interpretações, sem indulgências, entretanto com muito terror. Não no grito de Michelle, sim no seu silêncio, o que mais ecoa no público ao seu término. E continua ecoando no espectador, não só por carregar o fardo de Michelle. É por se tornar um fardo também.

4/5

*Elle é o selecionado da França ao pleito do Oscar de filme estrangeiro de 2017*

Train to Busan

Invasão Zumbi (Train to Busan, 2016).

O cinema coreano aprendeu uma fórmula única de juntar rentabilidade com qualidade, principalmente ao fazer blockbuster’s de sucesso sem abrir mão das narrativas fecundas. Contudo, sempre há aqueles “pontos fora da curva”, e infelizmente “Invasão Zumbi” é um desses. Devo dizer minha estranheza por tanta ovação a um filme tão repetitivo, batido e clichê. Eu entendo o apreço pelo Cena Cinematográfica Coreana, porém não podemos ser cegos e aceitar as bombas – sim, elas existem – que eles produzem, como nesse caso.

A estória aborda uma epidemia de um vírus que torna as pessoas letais zumbis, decretando um Estado de Emergência. Em meio a um trem em pleno movimento, o vírus vai se espalhando e tornando todos os passageiros reféns daquelas criaturas. Se a narrativa focasse apenas nisso, vários zumbis num trem em movimento, com passageiros alheios lutando para sobreviver, tendo como pano de fundo ainda a questão das diferentes “classes do trem”, algo similar ao “O Expresso do Amanhã”, teria um potencial gigantesco. No entanto, há o anseio de desenvolver seus personagens de forma melodramática pífia, os velhos dramas americanizados de sempre: O pai que precisa proteger sua filha, enfrentar as adversidades para mostrar o quão é capaz disso, a necessidade do sacrifício…. Enfim, é uma massa de clichês tão fortes que perturba pela qualidade tão duvidosa.

A sensação que passa é que o longa tenta ser uma versão oriental do filme também de zumbi protagonizado por Brad Pitt, “Guerra Mundial Z”. Pode não haver um mega-astro na patente de Pitt, porém os clichês permanecem. Incrível como um longa coreano totalmente preguiçoso, não faz sequer questão de adaptar os aspectos narrativos ocidentais, joga tudo na tela e ainda paga de cult. Uma frustração lamentável, com potencial de ser o filme de terror desse ano. Não aconteceu. Uma pena.

Nota: 1/5

Maggie's Plan

Maggie tem um Plano (Maggie’s Plan, 2016)

A jovem Maggie (Greta Gerwig), tenta viver por conta própria na cidade que nunca dorme: Nova Iorque. A moça deseja ter um filho, criando-o por conta própria, mas quando ela se envolve romanticamente com John, um homem casado (Ethan Hawke), as coisas podem se complicar e todo o equilíbrio dos planos de Maggie pode cair por terra. É uma comédia romântica despretensiosa com teores dramáticos. É bastante ternurinha, sobretudo pela carisma da personagem vivida por Greta Gerwig. Aliás, é engraçado que a atriz parece sempre ter o mesmo tipo de papel, contudo sua carisma hipnotizante conquista o público e ainda constrói certa singularidade em suas personagens, mesmo sendo parecidas entre si, elas tem um ponto diferente, problemático, único.

O roteiro é singelo, divertido e foca no imprevisível da vida, ai está a ironia: Mesmo que Maggie tenha um plano, a vida não conspira para que este se concretize. Rebecca Miller faz um filme personalista, lembra outros diretores como Woody Allen pela estrutura, contudo há um toque inventivo, atual, feminista. Um entretenimento singelo, ainda que seja bobo alguns momentos.

Nota: 3/5

Les Demons

Os Demônios (Les Demons, 2015)

Fui crente que assistiria um filme de juventude transgressora nos moldes convencionais, acabei me surpreendendo com um filme totalmente experimental sobre os males do amadurecer, narrando a emblemática experiência de um garoto ainda adolescente conhecendo a vida adulta aos poucos, abordando de forma sádica e medonha a crueldade da vida adulta.  Senti claras referências de Truffaut e seu “Os Incompreendidos” além do tom narrativo de Hitchcock, focando no suspense, no sentido que tudo pode acontecer, a suposta pureza da crianças não as livra de serem os mais temíveis seres humanos.

É difícil crer que seja o primeiro longa-metragem de ficção do diretor canadense Phillipe Lesange, ele domina a narrativa com precisão minuciosa, consegue dar leveza em momentos até nos arrebatar com cenas de pura tensão e densidade. A juventude exposta aqui é uma sem rumo desde a infância que, ao encontrar seu caminho rumo a maturidade, tenta retroceder. No entanto, já não há mais o que fazer, além de encarar a dureza da perversidade do ato de crescer.

Há alguns momentos perturbadores, vi muita gente revoltada, atacando o longa como pejorativo demais, apelativo etc. Entretanto, reconheço as alegorias perturbadoras como formas de retratar a monstruosidade do mundo “adulto”, infectando hoje em dia até a inocência da infância, influenciando portanto na construção de monstros piores dos de hoje. Triste constatação, mas bastante necessária.

Nota: 4/5

Le Cancre

O Ignorante (Le Cancre, 2016)

Paul Vecchiali já pode ser considerado um amigo da Mostra Internacional de Cinema, é seu terceiro longa-metragem consecutivo a ser exibido no festival, é uma grata oportunidade conferir um diretor tão instigante, com um tipo de Cinema tão próprio. Se ano passado tivemos “É o Amor” sintetizando a tragédia de amar, em “O Ignorante” o foco permanece no âmbito das tragédias passionais, agora no fardo da nostalgia de um amor passado, uma estória não bem sucedida decorrente dos erros do protagonista, que além de ser o ignorante do título, pecou pelo seu egocentrismo e arrogância, perdendo então o amor de sua vida, Marguerite (Catherine Deneuve). Seu filho (Pascal Cervo) então tenta auxiliar o pai (O próprio diretor, Paul Vecchiali) a tomar coragem e buscar sua redenção para com sua amada.

Há um tom autobiográfico no filme, parece não ser mera coincidência o próprio diretor ser portanto o protagonista, há um dinamismo nos diálogos, uma verborragia afiada e instigante, muito do que se fala não é mostrado, portanto o espectador precisa de atenção e imaginação para aumentar a experiência. Inclusive Marguerite é uma personagem presente em toda a narrativa, contudo só aparece em seus minutos finais. É um filme que não busca a redenção do seu protagonista, crê que pode tentar preencher as falhas de seu legado para que seu filho não erre como ele. É um relato singelo, transborda melancolia. Ainda que falhe em seu ritmo um tanto que arrastado, seu último ato vale pela obra.

Nota: 3.5/5

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