Doutor Sono (Doctor Sleep, 2019); Direção: Mike Flanagan; Roteiro: Mike Flanagan; Elenco: Ewan McGregor, Rebecca Ferguson, Kyliegh Curran, Cliff Curtis; Duração: 131 minutos; Gênero: Drama, Suspense, Terror; Produção: Trevor Macy, Jon Berg; País: Estados Unidos; Distribuição: Warner Bros. Pictures; Estreia no Brasil: 07 de Novembro de 2019;
“O Iluminado” é um dos mais cultuados e difundidos de filmes de horror. A obra de Stanley Kubrick perdura e influencia diretores continuamente, de maneira a parecer atemporal, até Steven Spielberg em seu “Jogador Nº1” se mostrou, inclusive, refém dessa significância, infelizmente. Precisa dizer algo mais? Entretanto, cabe a um nome muito menos badalado dar continuidade à história, com “Doutor Sono” servindo tanto como uma sequência ao filme de Kubrick como uma adaptação da obra homônima de Stephen King, lançada em 2013 e que, por sua vez, servia de sequência para seu próprio livro, adaptado nos anos 80 de maneira não exatamente a seu agrado.
Mike Flanagan parece ciente disso, mas a princípio é difícil denotar, porque nos encontramos mergulhados em um poço de pura nostalgia barata. A maneira como tenta recriar sequências do filme de Kubrick e criar uma certa semelhança entre os personagens é algo que vai minando, inicialmente, a individualidade e a identidade do próprio filme, até porque somos obrigados a aguentar uma duradoura introdução para, só então, de fato acompanhar a narrativa que realmente interessa ao filme e seu desenvolvimento. O que pesa ali se vê refletido de diferentes maneiras durante todo o restante do filme, porque demonstra muito claramente onde se erra.
A bem da verdade que toda a primeira parte de “Doutor Sono” se faz enfadonha, arrastada, é uma introdução toda baseada em exposições do roteiro que, supostamente, devem estabelecer terreno para o que será explorado adiante. Contudo, é uma verborragia desnecessária e de uma escrita até vexaminosa, porque é constrangedora a interação entre os personagens, isso principalmente em relação já a fase adulta do protagonista. Já aqui alguns pontos ficam sem nó, furos de roteiro, realmente, onde alguns personagens desaparecem e outros pontos que o roteiro havia tentando estabelecer são, aparentemente, prontamente esquecidos. É na transição dos atos que Flanagan consegue começar a empolgar com seu filme.
Porém, há uma intercalação muito grande entre esses momentos, e assim o filme oscila constantemente. Se as duas horas e meia parecem muito à primeira vista, e de fato são, é impressionante como se pode notar claramente que houveram cortes para chegar a essa duração final e que, mesmo com a ausência desse material, existem falhas de desenvolvimento em muitos dos personagens e em alguns pontos da narrativa. Nesses casos, todavia, não se trata nem de algo que ficou de fora, mas sim de algo que sequer existiu, porque são ideias mal desenvolvidas, inacabadas dentro do próprio roteiro de Flanagan.
É realmente um infortúnio, pois quando “Doutor Sono” empolga, é onde o cinema de Flanagan se faz mais notável. Suas reviravoltas e o domínio sobre o gênero permitem que o realizador brinque com diversos conceitos, quebre expectativas e, sua principal característica, entregue grandes reviravoltas de uma maneira que são completamente imersivas ao espectador. Até lá, até se encontrar, no entanto, é um filme muito inseguro, e qualquer detalhe parece desesperado em mover o espectador de alguma forma, implementando, por exemplo, um susto baseado em qualquer objeto em cena que possa causar algum barulho demasiado sequer, mesmo que ilogicamente e disfuncional dentro do que estamos vendo.
É tão frustrante, porque quando acerta é puro deleite. Ewan McGregor e Kyliegh Curran tem uma sintonia incrível, e entregam boas atuações. A participação de Jacob Tremblay é um dos pontos altos do filme, onde diversos elementos se alinham numa execução acima da média. Já Rebecca Ferguson (“Missão: Impossível – Efeito Fallout“) decaí um pouco para o caricato, muito por conta de como sua personagem é escrita. O destaque, no entanto, é Zahn McClarnon, num personagem soturno e que, mesmo com pouco desenvolvimento, consegue se fazer sentir uma ameaça, deixando saudade dos tempos do ator em “Fargo”, talvez o grande momento de sua carreira.
O mais interessante, no entanto, é a forma que Mike Flanagan encontra para fugir do que é somente nostalgia, criando para seu filme, quando culmina no clímax, uma identidade que dialoga sobre o estado das adaptações das obras de Stephen King, bem como em, simultaneamente, prestar uma homenagem ao filme de Kubrick como tornar seu próprio filme uma obra completamente individual. Não é acidental, portanto, o reencontro com o Hotel Overlook aparentar um tom até caricato, porque a intenção é justamente utilizar os elementos ali como uma espécie de gag contínua, onde, por fim, encontramos muito do que há de mais importante no filme.
Há um debate muito forte nesses momentos entre o novo e o velho, o respeito mútuo e uma maneira de superar esses enlaces e uma memória afetiva que só faz criticar de maneira cega quando se toca em determinadas propriedades, enquanto mostra que também é capaz se desprender dela. Flanagan, dessa maneira, constrói na narrativa de “Doutor Sono” um confronto que transcende a tela, protagonistas contra antagonistas, protagonistas contra seus próprios demônios, o filme com seus rótulos e o público com sua percepção. Assim, mesmo em meio a altos e baixos, vemos entregue um terror competente e com válidas reflexões para além da sessão.