A Vida Invisível (2019); Direção: Karim Aïnouz; Roteiro: Karim Aïnouz, Inés Bortagaray, Murilo Hauser; Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Fernanda Montenegro, Barbara Santos, Gregório Duvivier, Antônio Fonseca; Duração: 139 minutos; Gênero: Drama, Romance; Produção: Rodrigo Teixeira; País: Brasil, Alemanha; Distribuição: Vitrine Filmes; Estreia no Brasil: 21 de Novembro de 2019;
No mesmo ano em que o novo governo federal adota uma política combativa frente ao audiovisual e aos incentivos de cultura, o cinema nacional se apresenta com obras memoráveis, na construção de um legado histórico cinematográfico. Se “Bacurau” trouxe a catarse e a proposição pela resistência combativa, “A Vida Invisível” nos brinda com um dos melodramas mais emocionantes do cinema brasileiro, nos últimos tempos, aonde acompanhamos a trajetória de duas irmãs, separadas pela vida, tentando a todo custo se reencontrar, enfrentando as adversidades de um país conservador, patriarcal e opressor. Apesar de ser um filme majoritariamente focado na vida das duas personagens, trata-se, sim, de expor sublinhas políticas e sociais, de flagelos ainda pertencentes em nossa sociedade -e, não por acaso, tem tudo a ver desde da eleição do atual presidente até sua política de desmonte cultural.
Karim Aïnouz, responsável por “Madame Satã” (2002) e “O Céu de Suely” (2006), citando apenas os longas mais celebrados dele, dirige e roteiriza o longa baseado no livro de Marta Batalha. Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Júlia Stockler) são duas irmãs amigas, cúmplices, com uma sintonia única. Vivendo em meados dos anos 50, num Rio de Janeiro extremamente tropical -nunca a Cidade esteve tão febril – Guida um dia decide cometer um ato de impulso, foge com seu amante grego e deixa para trás sua irmã e seus pais. O conflito é certo. Acontece que as coisas não acontecem como ela esperava, porém, seu retorno grávida resulta em sua expulsão sumária da família. Sem ter conhecimento disso, Eurídice, agora casada, tenta conciliar sua vida de dona de casa ao sonho de ser pianista. Ainda que separadas, a conexão entre as duas continua viva, o sonho do reencontro se mistura ao desejo universal pela liberdade.
As escolhas estéticas de Karim são bastante requintadas, seja pela fotografia de Hélène Louvart, captando um Rio de Janeiro, variando entre planos abertos de uma cidade exótica e mágica em sua vastidão libertadora, quase catártica, versus os planos fechados nas casas, tanto da família das irmãs quanto na casa de Eurídice, refletindo opressão em cores mortas, inexpressivas. É um filme de nuances, aonde o que está sendo posto em jogo é a vida das mulheres em questão, invisíveis pelo patriarcado e pela opressão de uma sociedade machista, tentando pré-definir os papéis sociais femininos. Mais triste é perceber quantas vidas invisíveis, nós espectadores, conhecemos? Quantas mulheres que nunca foram? Tiveram que abdicar seus sonhos e seu potencial em prol deste status quo. Não deixa de ser uma catarse proposta por Karim Aïnouz, em prol de um basta de tamanha barbaridade. Dar voz, visibilidade e liberdade para as mulheres serem quem elas desejam ser.
Carol Duarte e Julia Stockler são soberbas. É fácil a confusão entre as duas, pois ambas se parecem fisicamente, aumentando ainda mais a imersão da conexão entre as duas. Duarte destrói em um simples olhar. Stockler tem uma performance física, aonde seu corpo é fio condutor de sua expressividade. Interessante perceber que ambas as personagens vivem relações sexuais sempre frustrantes, aonde seus olhos e gestos desconstroem o prazer – sexo quase sendo uma obrigação feminina e um prazer masculino. Gregório Duvivier, comediante popular do canal Porta dos Fundos, é uma grata surpresa. Sendo uma escalação um tanto curiosa, ele encarna perfeitamente a representação chula do patriarcado arcaico. Pra completar, temos a participação monstruosa de Fernanda Montenegro que, aos 90 anos, consegue em pouco mais de 15 minutos mostrar o por que é maior atriz do cinema brasileiro.
É um filme tão triste, as lágrimas soam quase obrigatórias. Na mesma forma, é uma obra em favor da liberdade, de coragem e pela vida. De ousarmos enfrentar quem for, mudar o status quo, libertarmo-nos dessas amarras torpes que nos atrasam como sociedade. Diante disso, “A Vida Invisível” é um longa riquíssimo, aonde nos deparamos com a importância em lutar por nós mesmos. Lutar por sermos visíveis. Não sei se é um grito de resistência, mas, com certeza, é bastante catártico.
“A Vida Invisível” – Trailer Oficial:
Acompanhe aqui nossa cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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