Retrato de Uma Jovem em Chamas (Portrait de la Jeune Fille en Feu, 2019); Direção: Céline Sciamma; Roteiro: Céline Sciamma; Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami, Valeria Golino; Duração: 121 minutos; Gênero: Drama, Romance; Produção: Véronique Cayla, Bénédicte Couvreur; País: França; Distribuição: Supo Mungam Films; Estreia no Brasil: 09 de Janeiro de 2020;
O subjetivo é algo intangível, difícil de expor, de alguma maneira, ao outro, porque dificilmente será possível reproduzir em perfeição a imagem daquilo que se tem em mente. Como descrever, portanto, o sentimento quando o silêncio toma conta e o filme de Céline Sciamma se encerra? A experiência é algo único, singular, não só pela maneira como cada espectador do filme tira suas próprias conclusões, mas pelo que Sciamma constrói em “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, uma obra cuja cada momento parece ter como ambição jamais ser passageiro, profundo como muitos ousam tentar fazer, mas que poucos, de fato, conseguem.
Céline Sciamma é só sucesso! Não somente ao criar algo tão belo e extraordinário cuja experiência é digna de se viver, quem sabe, mais de uma vez, mas por tornar algo tão pessoal e íntimo em uma obra tão relacionável e empática. Contudo, não é apenas de sentimentos que o filme vive, ou sequer se sustenta neles, é uma parte intrínseca à uma exímia realização que encontra tremenda felicidade, de certa maneira, ao desenvolver uma das narrativas mais tocantes que veremos no ano e, até mesmo, na década, seja nesta que se encerrou, ou na que agora se inicia, aqui de forma estonteante.
Como somos conduzidos por essa narrativa que, passada no século XVIII, coloca as vidas de Marianne (Noémie Merlant) e Héloïse (Adèle Haenel) no mesmo caminho, é algo encantador e que evoca uma sensibilidade enorme do público, não à toa, mexe conosco e se faz capaz de gerar uma inquietação, tão belíssimo é seu desenrolar e os elementos que ornam para tornar tais potencias a realidade que são, aquilo que podemos apreciar diante dos nossos olhos. Qualquer adjetivo é pouco para traduzir a fluidez poética com a qual Sciamma constrói e nos envolve em “Retrato de Uma Jovem em Chamas”.
Um dos principais destaques é a fotografia de Claire Mathon, responsável pela função no também belíssimo “Atlantique” -lançado no Brasil pela Netflix, sem muito alarde. Aqui há uma relação muito orgânica da diretora de fotografia com a própria diretora, pois é fundamental o desenvolvimento da narrativa através da imagem também. A forma como as duas vão trabalhar o envolvimento cada vez mais intenso das protagonistas, e as consequências disso, mas também a peculiaridade de como se dá isso, num papel ambíguo de observador e observado. Por isso mesmo os minutos finais conseguem se fazer tão extasiantes, sinestésicos até. A culminação de um tour de force.
Obviamente o ápice disso só é possível, também, pelo trabalho de Noémie Merlant e Adèle Haenel em cena. O olhar da primeira é sempre perfurante, arrebatador. As feições da segunda são sempre carregadas com um requinte de melancolia. Aos poucos, as duas se encontram e se desarmam, se desafiam. Encontram, em meio ao isolamento do lugar, um senso de acolhimento. Se tornam menos defensivas em seus trejeitos, e passam a ser mais acaloradas, de maneira que Sciamma e Mathon retratam com carinho e delicadeza o que surge ali, num coletivo que ganha vida, e alegria, através das duas protagonistas.
Céline Sciamma faz uma obra autoral que nunca se fará passageira. “Retrato de Uma Jovem em Chamas” não é apenas a história de um momento, ou até o retrato do mesmo, é a própria essência do que os constitui, é um atestado da memória que vive conosco, que não devemos deixar partir por receio de algum arrependimento qualquer. É também uma declaração da dor e da força presentes no coletivo feminino, inclusive há uma limitação certeira da participação de personagens masculinos durante todo o filme, porque não só a história das protagonistas, mas a de cada mulher, pertence a elas próprias. A chama de Sciamma, poética ou não, arderá, e não há nada que se possa fazer contra isso. Só resta nos entregarmos ao quão bela e potente é a tempestade de emoções no qual a realizadora encontra seu auge, eternizando sua obra.
2 Comments
Pingback: Os Indicados ao 73º EE British Academy Film Awards - Cine Eterno
Pingback: Os eternos de 2020 | Melhores do ano - Cine Eterno