“Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” (“The Hunger Games: The Ballad of Songbirds & Snakes”, 2023); Direção: Francis Lawrence; Roteiro: Michael Lesslie e Michael Arndt; Elenco: Tom Blyth, Rachel Zegler, Josh Andrés Rivera, Hunter Schafer, Jason Schwartzman, Peter Dinklage, Viola Davis; Duração: 157 minutos; Gênero: Aventura, Drama, Ficção Científica; Produção: Nina Jacobson, Brad Simpson, Francis Lawrence; País: Estados Unidos; Distribuição: Paris Filmes; Estreia no Brasil: 15 de Novembro de 2023;
“Jogos Vorazes” é inquestionavelmente uma das adaptações de franquias infanto-juvenis mais bem sucedidas da história, com estreias e bilheterias avassaladoras e um sucesso que alçou seus protagonistas ao estrelato máximo, principalmente Jennifer Lawrence. Um universo que praticamente dispensa apresentações, de tão bem recebido e difundido à época. Não é à toa, portanto, que uma sequência aos quatro filmes venha quase uma década depois. Por mais que tenha sido bem sucedida, a franquia sofreu um óbvio desgaste ao seguir os passos de tantas outras adaptações e dividir o capítulo final em dois filmes, tanto que “A Esperança – O Final” teve o menor retorno financeiro dentre os quatro filmes, mesmo tendo o maior orçamento. Apesar disso, nada que qualquer um vá reclamar, até porque a despedida desses personagens foi algo, à época, extremamente efetivo, e isso vindo de alguém que cansou de ler e reler os livros, assim como de rever os filmes. A Katniss Everdeen interpretada por Lawrence, ao menos no início, inspirou algo muito singular e até mais bem vindo ao que comumente vemos em outras obras infanto-juvenis. Uma história nesse mesmo universo, mas com diferente perspectiva, outros protagonistas, seria sempre algo difícil de se realizar, pois se desapegar de figuras tão marcantes quanto as das primeiras obras de Suzanne Collins é algo complicado, visto que elas são parte fundamental do funcionamento de uma narrativa que, por si só, não é tão inovadora. Mas era funcional, e muito. A mesma questão do desgaste em dividir o livro final em dois filmes esbarrava nisso, entender por quê funcionou tudo tão bem nos dois primeiros e o que aconteceu para uma queda nas produções subsequentes. Tais questionamentos parecem não surtir efeito quando assistimos à “Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”.
Se bem que, por um lado, a obra original de Suzanne Collins é, por si só, controversa. Afinal, a história deste novo filme se passa 60 anos antes da edição dos Jogos Vorazes vencidos por Katniss, relatando a ascensão de Snow -no original interpretado por Donald Sutherland, agora Tom Blyth– ao poder e a participação de Lucy Gray Baird (Rachel Zegler), outra participante dos jogos muito conhecida no Distrito de Katniss. Só que esse prólogo requer algo mais complexo, porque de alguma maneira Collins, através do seu livro, e Michael Lesslie (“Assassin’s Creed”) e Michael Arndt, roteiristas deste filme, desejam gerar algum tipo de empatia para com o personagem de Snow, para que ele possa sustentar o filme. E isso parte do lugar errado, numa tentativa de tornar essa figura no vilão que originalmente conhecíamos, dando motivações até nobres, entre outras coisas. O maniqueísmo faz mal, mas se seu vilão e maior antagonista consegue ser alvo de mais compaixão que um tributo de um distrito que não o 1 e o 2, há algo de errado. É muito gritante quando tal tributo consegue ser completamente maniqueísta, porque há um claro problema de antagonismo no filme. Justamente a essência que se perdeu entre os dois primeiros e os últimos filmes da franquia, uma cilada da qual Francis Lawrence não se mostra capaz de sair, numa toada semelhante a David Yates (“Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore”) no universo Harry Potter, onde o desgaste dos realizadores na franquia impera sobre a criatividade.
A transição de Gary Ross para Francis Lawrence, do primeiro para o segundo filme, surtiu um efeito positivo porque ali se pedia algo diferente, mas posteriormente o mesmo não ocorreu, e parece haver um latente comodismo que tira das adaptações um potencial que podiam ter. Qualquer traço de assinatura do cineasta parece se esvair, e os erros se repetem. “Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, inclusive, talvez até calhasse ter um olhar feminino, seja na direção ou no roteiro, justamente para impedir que o que acontece aqui viesse às vias de fato. Porque Rachel Zegler (“Amor, Sublime Amor“, “Shazam! Fúria dos Deuses“) não está ali à toa, e apesar de ser um nome recém lançado em Hollywood, não é de pouca expressão. E o talento da garota se sobressai até ao próprio filme, porque ela vai além do que a personagem lhe oferece. E essa Lucy Gray Baird é um problema, porque aqui ela mal é protagonista de sua própria história, uma figura rasa e com pouco desenvolvimento, que evoca o que há de pior no filme: soluções fáceis e rápidas, clichês e redundâncias de roteiro. A ideia do romance quase impossível entre uma tributo do Distrito 12 e um filho da capital e seu mentor soa interessante no papel, mas só como ideia, quando a execução se desfaz de qualquer complexidade, ou pior, quando recusa a entender a simplicidade do sucesso de Jogos Vorazes como um todo.
A revolução que Katniss inspirava e ilustrava era nada mais que a luta de classes, oprimidos contra opressores. Já aqui, desde o primeiro momento Snow é apresentado como uma figura no papel de vítima, e sua ascensão parece até um tom vitorioso para o espectador, mesmo que para isso ele tenha que fazer escolhas extremas. Na realidade, há um esboço de contradição nessas escolhas, mas o filme nunca as desenvolve com vontade ou sequer clareza, é um discurso muito ínfimo e quase imperceptível, irrelevante no todo do contexto. É um reflexo da esterilização moral que Hollywood impõe à maioria de suas histórias, e que reflete também na criatividade de seus realizadores. Não é por acaso que Francis Lawrence se finque na franquia, porque fez questão de esterilizar qualquer faísca de rebelião que ousasse desafiar um status quo. Jogos Vorazes nunca deixou, deixará ou deixaria de ser um produto, mas a princípio questionava a moralidade de um sistema que impera e oprime, por isso é tão mais contraditório querer humanizar Snow. Era preciso mais cinismo e vigor, oportunidade que se vê perdida com o Lucretius “Lucky” Flickerman de Jason Schwartzman (“Asteroid City”) que é caricato, mas num tom completamente diferente ao de Volumnia Gaul de Viola Davis (“Air”, “A Mulher Rei”), essa sim que recaí no maniqueísmo que tanto se quer evitar para Snow, mas que ainda assim é uma personagem cuja filme quer tornar divertida através do caricato, um completo equívoco. “Jogos Vorazes – A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” não têm qualquer traquejo para debater essas complexidades que se apresentam através de seus personagens, e sua violência estéril e asséptica torna tudo mais ainda sem vida ou real impacto. Não há cantoria de Rachel Zegler que seja suficiente para emocionar quando o filme falha em entender o papel de seus próprios protagonistas. Se antes era inspiradora, agora a franquia soa mesmo como notícias da grande mídia em seu tratamento ao genocídio visto a olhos nus em pleno contemporâneo.
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