O Festival Internacional de Cinema da Bienal Internacional de Curitiba, ou simplesmente FICBIC, chegou na última quarta-feira ao final de suas sessões no Espaço Itaú do Shopping Crystal, em Curitiba. Espaço que propiciou, na última semana, alguma das experiências cinematográficas mais gratificantes do ano. Assim, eis aqui uma análise em resumo dos filmes que assisti no quinto, sexto e sétimo dia dos Panoramas Nacionais e Internacionais do Festival.
Sonita (idem, 2015)
Da diretora iraniana Rokhsareh Ghaem Maghami, este documentário é o filme mais premiado que participa dessa edição do Festival. Não à toa, afinal o trabalho da diretora e sua equipe se apresenta como uma oportunidade singular, encontrando numa realidade comum no Ocidente algo que é extremamente incomum. Os prêmios, no entanto, devem se dar muito mais pelo fator emocional do que técnico.
No documentário somos apresentados à história de Sonita Alizadeh, uma garota afegã que, longe dos pais, vive no irã sem documentos e dependente do centro social de ensino do país, que rende algum dinheiro para ela e a sobrinha e tia com quem vive. Seu sonho é algo que vai contra as leis iranianas e a vontade de sua família afegã, mas cuja talento não lhe falta. O desejo de ser uma Rapper vem acompanhado de letras que denunciam uma opressora e desumana realidade, um destino que se aproxima cada vez mais conforme a família de Sonita arranja para vende-la a um homem, sendo pagos pelo casamento arranjado.
A singularidade da situação de Sonita é única em meio aos inúmeros casamentos arranjados que os afegãos proporcionam, e isso é retratado dentro da própria instituição na qual ela estuda. A inserção de Sonita nessa realidade, na qual o destino se vê sempre mais próximo de uma consumação, eleva questões éticas e morais por parte dos documentaristas. Pois, em determinado momento, caso não ajam em prol da garota, o destino culminará numa triste verdade, assim, ainda que partindo de um ponto não intencional, a diretora Rokhsareh acaba virando uma personagem em seu próprio filme.
Não detentora dos melhores recursos audiovisuais disponíveis, a diretora entrega um documentário que faz o básico tecnicamente, o que é mais suficiente, ainda mais pelo papel que desempenha Sonita. E é aí que o documentário nos conquista, desenvolvendo uma jornada emocional em busca de direitos básicos a qualquer ser. Um trabalho humanitário que merece toda admiração possível, quebrando barreiras e ultrapassando conceitos, morais e éticos, de maneira justificável e resultantes numa catarse impressionante.
Deserto (2016)
Conhecido principalmente por trabalhos na televisão, em novelas da Globo e, atualmente, na série O Negócio, da HBO, a função de Guilherme Weber, até então, havia sido a de ator. Com Deserto, no entanto, ele faz uma transição e se lança no posto de diretor em um longa-metragem de estreia recheado de ambições, mas muito mais equivocado do que a poética que tanto tenta evocar.
Relatando a história de uma trupe de circo, em um longínquo passado ou um distópico futuro, no Norte do Brasil ou em lugar algum, como intende o diretor e co-roteirista, que é consumida pelo marasma desértico no qual se encontra, a meio uma crise econômica e existencial, onde a decadência bate à porta, se é que há uma porta na qual se bater previamente.
A incongruência geral do resultado final é tanta que se torna fácil perceber alguns dos erros e acertos maiores de Guilherme Weber em sua estreia. A equipe parece escolhida a dedo, não só a frente, mas por detrás das câmeras. Design de Produção e Figurino criam um cenário e situam os personagens de maneira irretocável, tudo realçado pela Direção de Fotografia, de Rui Poças, que desde o princípio geram imagens que parecem não querer se desafazerem de nossas memórias.
O elenco também parece inspirado pelas escolhas do diretor, alguns nomes mais que outros, é verdade, mas num trabalho que rende tal qual à altura daquilo que lhes é exigido. Porém, a própria exigência não parece ser correspondida pelo roteiro de Guilherme Weber e da romancista Ana Paula Maia, ferramenta que falha ao tentar brincar com a ideia de interpretações dentro de interpretações e, por vezes, torna algumas cenas mais chocantes em acontecimentos de violência gratuita. Ainda que tenha potencial, a estreia do ator na direção deixa a desejar por uma falta de alinhamento entre toda a ambição evidente na obra.
Quase Memória (2015)
Difícil acreditar ser uma coincidência a presença de um filme do diretor Ruy Guerra num mesmo Festival onde seu trabalho é parcialmente abordado num documentário sobre a história do cinema nacional. Assim, a ansiedade pela exibição de Quase Memória é potencializada pela presença anterior de Cinema Novo, pois reacende uma chama que, talvez, podia ter sido extinguida. Mas é um retorno arrebatador após uma década longe das funções que aqui Ruy Guerra desempenha brilhantemente.
Não surpreenderia, aliás, Quase Memória ser um canto do cisne do diretor, que parece ter a urgência em relatar algo que quase já é aquilo que um dia foi. É, portanto, uma quase memória. Protagonizado por Tony Ramos e Charles Frick como o mesmo personagem em duas épocas diferentes, aqui vividas simultaneamente, num encontro entre passado e presente, ou algo assim, na qual a busca por algo tem de se dar através das memórias dos dois.
O quanto do filme é ficção fica difícil definir, não que haja a necessidade. Até porque a realidade é uma verdade que se faz distante desde o primeiro momento em Quase Memória. Assim, Ruy Guerra nos conduz por uma narrativa permeada por elementos oníricos, em memórias que se confundem com a realidade de um passado há tanto vivenciado. Através de uma estética na qual Quase Memória mostra Ruy Guerra ainda possuir ambições e capacidades tão amplas quanto em quaisquer outras ocasiões.
Num filme que utiliza de metalinguagem e do subconsciente numa experiência consciente, no tanto que se diz de maneira literal no filme, ainda mais é dito através de metáforas em Quase Memória. Uma obra que reaproxima o passado do presente, indo de encontro a uma aura que se fazia parecer esquecida, mas da qual estava presente ali, como uma quase memória, na espera somente de alguém lhe reacender a chama para um novo ciclo, uma nova vida.
The Land of the Enlightened (idem, 2016)
O documentário do fotógrafo Pieter-Jan De Pue, que marca sua estreia na direção, é um trabalho que parece ter requisitado uma elaboração tamanha. Tudo porque o ponto alto da obra é sua fotografia, que exerce uma função deslumbrante frente ao cenário afegão que retrata, no qual o diretor e sua equipe de produção parecem mergulhar de corpo e alma para retratar da maneira mais justa possível, onde há beleza reservada em meio ao caos.
The Land of the Enlightened documenta um ciclo vicioso que acomete o deserto no Afeganistão. Com a presença constante de tropas americanas, a partida deles do país está prestes a alterar a situação. Crianças desempenham um papel que vai desde o recolhimento de cartuchos de balas vazios ao resgate de esquecidos explosivos soviéticos, até a utilização dos mesmos na prospecção de minas de Lappis Lazulli, que são transportadas através das montanhas controladas por Gholam Nasir e sua gangue, todos crianças.
Num processo que envolve todas as partes direta ou indiretamente, a capacidade de evidenciar isso é uma das funções mais bem desempenhadas pelo documentário. Coisa que faz, sem dúvida alguma, através de algumas das mais belas imagens que os cenários reais são capazes de propiciar aos olhos. Há de colaborar nisso, ainda, a forma com a qual Pieter-Jan De Pue se mantém firme diante das intempéries qualquer que lhe são impostas, tudo em busca de imagens de tirar o fôlego.
O funcionamento natural da situação, no entanto, não parece o suficiente para Pieter-Jan De Pue, e é necessário, acredita o diretor, ser preciso estabelecer um certo conto fantasioso na tentativa de criar uma narrativa que conecte o Afeganistão através das eras. Com essa escolha, enquanto se ressalta a vitalidade das crenças afegãs, se enfraquece o poder do documentário, que até mesmo parece confundir-se entre o que é a realidade vivida por seus sujeitos e o que as fantasias do roteiro geraram.
Nada a pontos extremos de privar The Land of the Enllightened de muitos méritos, coisa que nem mesmo os múltiplos cortes bem editados em sequências ficcionalmente reais são capazes de fazer. O trabalho de Pieter-Jan De Pue, no entanto, parece perder um pouco de sua mágica frente a sua própria idealização do funcionamento da coisa. A simplicidade na captação dos eventos seria mais válida, mais forte, mais potente. A técnica perfeita gera uma imperfeição incômoda.
Jovens Infelizes ou Um Homem Que Grita Não é Um Urso Que Dança (2016)
O nada curto título do longa-metragem de Thiago B. Mendonça já deixa claro que seu filme não tem pudor algum, ou ao menos devia ter tal efeito. Não recomendado para apoiadores de golpe parlamentar, o filme de título gigante tem como propósito explorar uma juventude extraviada em meio a reinvindicações que se fazem necessárias em prol dum futuro que ainda dê direitos plausíveis a qualquer ser.
Só que o filme enfrenta algumas revelias na sua vontade de criar algo que não careça de meias verdades, porque se tem medo de algo, é disto, meias verdades. Por isso não esconde seu discurso, comunista, socialista, de esquerda. Um forte discurso, mas que se perde em meio a tanto discurso. Por conta de seus próprios atores/personagens, que se veem envoltos em suas próprias meias verdades, impedindo que o filme se dê em sua plenitude.
Porque, se ninguém é de ninguém, há uma sutil trama decorrendo que demonstra que, no grupo ali, um parece, sim, pertencer a outro, com raras exceções. E se as mulheres querem ensinar que não há, ou deve haver, nenhum “machinho” na casa, o roteiro parece exercer o contrário, dando ao estrangeiro do grupo um ligeiro protagonismo, do qual tanto o próprio personagem como o ator parecem não querer se desfazerem.
Algo que se torna uma recorrência dentro da narrativa, mas sendo um elemento do qual, diferente de outras problematizações, o realizador não percebe, seja porque não quer ou por realmente não se dar conta de como, tomando um rumo, vai justamente na contramão do seu discurso. A pluralidade de Thiago B. Mendonça, portanto, têm limites, porque é redundante e ineficaz em diversos em pontos, falhando não só com o público, mas com sua própria proposta.
O que não invalida a radicalidade de todo o restante, é bem verdade. Porque a realização de algo com recursos até precários, se fazem mais válidas ainda num discurso que representa a vontade de um povo que se vê oprimido, com a voz que ecoa em gritos que não se fazem ouvidos. É um filme que se faz necessário, ainda que em meio a deslizes, e se faz de maneira contundente, quebrando preceitos e de maneira rebelde. Uma postura que condiz perfeitamente bem com sua proposta.
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