Um Animal Amarelo (2020); Direção: Felipe Bragança; Roteiro: Felipe Bragança, João Nicolau; Elenco: Higor Campagnaro, Isabel Zuaa, Tainá Medina, Catarina Wallenstein, Matamba Joaquim, Lucília Raimundo, Diogo Dória, Adriano Luz, Herson Capri, Thiago Lacerda, Sophie Charlote, Márcio Vito; Duração: 115 minutos; Gênero: Drama; Produção: Marina Meliande, Luis Urbano; País: Brasil, Portugal; Distribuição: Olhar Distribuição; Estreia no Brasil: –;
A dificuldade de fazer um cinema fantástico é sempre a literalidade da metáfora, tornando-a óbvia e excluindo qualquer subjetividade que o espectador possa vir a ter. Recentemente, a série nacional da Netflix “Boca a Boca“, de Esmir Filho, usou desse artifício, porém pecou em ser literal demais. O cinema de Felipe Bragança sempre flertou com esse realismo fantástico, mas com “Um Animal Amarelo”, assume definitivamente seu compromisso com a fábula, fugindo da obviedade, aderindo até elementos folclóricos, étnicos e culturais na narrativa.
Fernando (Higor Campagnaro) é um cineasta brasileiro falido, tentando produzir um longa-metragem sobre a estória de seu avô (Herson Capri). Para isto, entra numa jornada literal e espiritual entorno da trajetória de seu avô, carregando consigo um osso de fêmur deixado por seu ancestral, passando por países luso-portugueses: Brasil, Portugal e Moçambique. Encontrando um passado carregado de sangue e violência. Uma fábula entorno da busca da ancestralidade perdida.
O tal animal amarelo é uma criatura a qual apenas Fernando enxerga. Ela vai servindo-lhe como se fosse um guia espiritual. Em dado momento, o protagonista encontra com figuras chaves, como a própria narradora do filme (Isabél Zuaa), que confronta seu passado, misturando a ancestralidade do seu avô com a própria trajetória étnica e cultural brasileira, expondo veias da exploração, do racismo e do genocídio contra o povo afrodescendente, forçado a ser escravizado pelos senhores de terra. A busca por uma ancestralidade nacional, de dissecar a brasilidade, foi abordada também no recente “Todos os Mortos” – ironicamente ambos estão em competição no 48ª Festival de Gramado. As similaridades não se limitam apenas ao tema, suas ambições são iguais.
Diferente do filme de Dutra e Gotardo, o longa de Bragança não abdica de seu realismo fantástico em nenhum momento, abraçando o valor alegórico de sua narrativa, usando inclusive diversos recursos ao longo do filme, formando uma narrativa dinâmica. A questão principal entorno de qualquer filme alegórico é: suas alegorias são tão interessantes quanto parecem ser? É uma pergunta em aberto. Particularmente, a vontade de se mostrar tão relevante cansou um pouco, sobretudo pelo ritmo arrastado de metade do segundo ato até seu desfecho – poderia facilmente exprimir o ato final.
O roteiro de Bragança e do português João Nicolau (do ótimo “John From”) representa um argumento interessante, de compreensão da relevância eurocêntrica na história mundial, contudo refuta suas influências sob as culturas locais. Abrindo mão, portanto, da essência da cultura de Moçambique, sem interferência do colonizador, uma cultura que fora violentada, mas resiste em existir como algo único, singular. Isso exprime dentro da metalinguagem, da busca do cineasta personagem em fazer seu filme – renunciar a um olhar cinematográfico clássico e adentrar na decomposição desse olhar entorno da representação de um cinema fantástico propriamente brasileiro. Serve quase como um manifesto à um cinema local, valorizando sua estória étnica e cultura própria, em seus primórdios. Na sua brutalidade.
A performance de Higor Campagnaro compreende inteiramente a seu papel na narrativa, sobretudo ao alterar o tom na mesma proporção que os atos transcorrem. Ele é uma força gigante em tela, no linear entre o cômico e a tragédia, mas não decaindo na caricatura vã. Isabél Zuaa com uma presença magnética em cena, consegue encarnar com exatidão o significado da ancestralidade. Bragança consegue dirigir seus atores com máxima compreensão, deixando estes empenharem um tom teatral, que combina com sua realização como um todo.
“Um Animal Amarelo” serve como uma grande experiência cinematográfica. Pode não ter a profundidade que almeja, contudo, apresenta argumentos que excedem a narrativa, induzindo o espectador a sair de sua zona de conforto, confrontar a experiência cinematográfica em si, em prol de uma significância. Em dado momento, a narradora dita: “Enquanto seu país mergulhava num delírio febril feito de amnésia e de dor”; deixa evidente, portanto, que essa tragicomédia de nossa brasilidade está longe de acabar, apenas começando.