Martin Scorsese ficou ao longo de vinte anos se preparando para realizar a adaptação do celebrado “Silêncio” , livro do japonês Shusaku Endo. Segundo o próprio diretor, a obra literária de Endo fora o livro que ele mais leu ao longo de sua vida, não por acaso a demora para atingir a maturidade e complexidade necessária para adapta-lo. Scorsese além de dirigir e produzir também é um dos roteiristas do filme, ao lado de Jay Cock (mesmo de gangues de Nova York), ambos adotam um tom quase literal na adaptação, excluindo meramente as alegorias que não funcionariam como cinema. Tive a oportunidade de ler o material original, trata-se de um livro poderoso na forma de tratar sobre os questionamentos da fé cristã e sua influência na sociedade, colocando ainda como perspectiva o projeto missionário dos católicos europeus durante o século XVII. Scorsese pega tudo isso e transcreve para o cinema de forma singular, numa obra nitidamente pessoal, perceptível não só pelo tempo de produção. Os questionamentos nos quais o filme propõe são transcendentais ao livro e a própria narrativa cinematografia. E o diretor espera que seu público venha para dentro da sala contendo algum daqueles debates,  para desenvolve-los juntos.

A trama gira entorno de dois padres portugueses (Andrew Garfield e Adam Driver) que vão ao Japão em busca de seu mentor, o também Padre Ferreira (Liam Neeson),  a fim de averiguar os boatos nos quais ele teria apostado -abdicado da fé.  O Japão era um país majoritariamente budista, não só resistia ao nascimento da igreja Católica no território como também perseguia duramente aqueles que o pregavam. Eis que os dois jovens padres acabam por ver uma enorme carência deixada em pequenas vilas de camponeses, decidindo por ficar e pregar o cristianismo, ainda que correndo risco de vida. Em dado momento, os dois acabam por se separar, se deparando com as sanções e repressões do governo local.

O diretor norte-americano chegou a ser boicotado pela Paramount, o estúdio não gostou da produção ter custado muito além do esperado e ainda ter uma longa duração, tentou por várias vezes forçar o diretor a lançar uma versão mais comercial a fim de lançar em meio as premiações, garantindo algumas indicações e mais visibilidade como produto comercial. Scorsese não só recusou como ainda fez questão de brigar por conta de cerca de 30 minutos, os quais garantiu fazer “total diferença”. De fato, o longa poderia ser um pouco mais enxuto, pois sua duração enorme não soa muito convidativa para os mais atentos, contudo é um caso extraordinário onde nenhuma cena destoa de toda a narrativa, tudo parece estar plenamente conectado, com uma direção maestra do Scorsese que além de propôr os conflitos, os desenvolve na forma de capítulos (não literais), tornando a experiência simplesmente imensurável. No primeiro “capítulo” do filme vemos os padres chegando ao país estrangeiro, se deparando com aquela terra literalmente esquecida por Deus. No segundo, vemos os padres em conflito com a própria existência desse Deus e sobre seus atos estarem trazendo tanto sofrimento para aquela região. E por fim, vemos o ato de renúncia da fé.

Há muitas interpretações a serem dadas para cada etapa transcorrida pelos personagens, sobretudo o do Andrew Garfield. O silêncio do título pode ser considerado a inércia de Deus para com os sofrimento de seus fiéis. Ou mesmo o silêncio da sociedade para as brutalidades cometidas pelos seus representantes. Ou mesmo o silêncio dos governantes aos males da sociedade. Ou ainda o silêncio dos próprios padres e missionários para com o desrespeito ao afrontar, diminuir e desrespeitar as demais religiões.

A crueldade humana é posta de forma escancarada, dura, vemos os japoneses cometerem atos de tortura que, ironicamente, foram tirados da bíblia cristã (!), atrocidades nas quais podemos interpretar como uma resistência ao imperialismo dos europeus no oriente, ainda que sejam altamente agressivas de se ver e pensar. Aliás, não podemos esquecer como o cristianismo cometeu atrocidades em nome da fé, como nas cruzadas. Mais uma vez pensamos no “Silêncio” de Deus ao se deparar com tamanho morticínio.

Não é um filme fácil, justamente por ser deveras confrontador, aqueles mais religiosos ficariam irritados pelos ataques severos que o longa faz à figura de Jesus Cristo, por exemplo. Porém é uma experiência obrigatória, sobretudo por proporcionar um debate único sobre as questões da fé, seus limites e suas dimensões. Scorsese não está em busca de um atestado de existência ou não de Deus, ele quer sim buscar um sentido que faça a pena valer ter fé, seja no que ou quem e, principalmente, se vale mesmo a pena lutar por isso. Se abdicar daquilo que acreditamos nos torna mais fraco ou mais fortes e ainda mais convictos de nossos valores.

Enfim, não é uma jornada fácil, porém é algo que vale a pena ser feito.  Não consigo imaginar o quão trabalhoso deve ter sido para a editora Thelma Schoonmaker ao montar esse filme, porém seu trabalho é o principal alicerce da obra, por fazer o filme ser totalmente linear e sem excessos. A fotografia de Rodrigo Pietro é impecável, não só bonita porém toda narrativa, os tons escuros e nebulosos refletem muito as crises vivenciadas pelos personagens. A trilha sonora também é um recurso narrativa bárbaro, sobretudo quando expõe ao público literalmente o silêncio, um recurso ousado. Scorsese encontra-se em plenitude no seu trabalho mais pessoal, seu elenco encara com maestria os desafios, podendo destacar os titãs Andrew Garfield – na imagem de próprio Jesus Cristo – e seu antagonista, o inquisidor, vivido pelo japonês Issei Ogata, no papel, talvez, mais difícil do filme, Ogata não se preocupa em humanizar seu personagem, mostra apenas que a mesma convicção na qual os católicos tem sobre a soberania de sua fé é comparável à dos japoneses ao defenderem o budismo.

Fácil ou não, Silêncio é uma das experiências mais autorais e engrandecedoras dos últimos anos. É aquele filme que vai consigo para casa. E só por isso já vale a pena, porém ainda se trata de um filme extremamente bem realizado. Não é um entretenimento, reitero. Porém vale como uma experiência humana e cinematográfica única.

 

2 Comments

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