Todos os Mortos (2020); Direção: Marco Dutra, Caetano Gotardo; Roteiro: Caetano Gotardo, Marco Dutra; Elenco: Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Thaia Perez, Agyei Augusto, Rogério Brito, Andrea Marquee, Thomás Aquino, Gilda Nomacce, Teca Pereira, Leonor Silveira e Alaíde Costa; Duração: 120 minutos; Gênero: Drama; Produção: Maria Ionescu, Sara Silveira; País: Brasil, França; Distribuição: Vitrine Filmes; Estreia no Brasil: –;
Presente na competição do Festival de Berlim, ocorrida no início do ano, “Todos os Mortos“, o novo longa de Marco Dutra – de “As Boas Maneiras”, “O Silêncio do Céu“- ao lado de Caetano Gotardo -“O Que se Move” -, disseca a constituição do povo brasileiro, tomando como ponto de partida eventos históricos que assolaram o país e como estes atingem uma família tradicional, cafeeira e dona de escravos. Em uma São Paulo de 1899, onze anos após a abolição da escravidão, fantasmas ainda caminham entre os vivos. As mulheres da família Soares, antigas proprietárias de terra, lutam para perpetuar seus privilégios. Já Iná Nascimento, mulher que viveu por muitas décadas como escrava, batalha para achar sua ancestralidade, em um mundo ainda muito hostil. Cada uma dessas mulheres tenta construir um futuro próprio, à sua maneira.
A construção imagética de “Todos os Mortos” é pensada em expor a discrepância entorno da sociedade brasileira, os pequenos detalhes denotam quanto aquele Brasil retrógrado do século 19 encontra-se presente, vivo, no país em pleno século 21. As lentes da fotografia de Hélène Louvart (do recente “A Vida Invisível“) potencializam a riqueza da imagem em cada enquadramento, pois refletem um caráter sociológico gigantesco em relação a dita “brasilidade”.
O contraste entre as duas famílias, a Santos, branca, e a Nascimento, negra, demonstra a guerra de narrativas e de representatividade cada vez mais em evidência. Enquanto os Santos querem manter o seu status quo, acreditando terem direito de dominarem seus empregados, como meros servos, sua contraparte apenas busca sua origem, seu direito básico à existência: a transparência de sua ancestralidade roubada, o esplendor da liberdade dolorosamente conquistada e pôr fim a possibilidade de um futuro digno, aonde consiga ao menos o direito a dormir numa cama.
A contradição do fato de ambos os diretores serem brancos, advindos de famílias de classe média, mais alinhadas, portanto, a família Santos, infla o debate entorno do local de fala. Embora a construção dos personagens não seja o foco da obra, muito mais centrada em construir as relações e imagens que emulem a dimensão dessas. Evidente, é uma controversa que torna o debate ainda mais interessante, porém, o tom frio no qual os diretores têm aos seus personagens, um olhar quase voyeurístico onde pouco importa quem eles são, demonstra que o excesso de ambições não sustenta esse debate, tornando um tanto raso, além de gritar a carência da vivência entorno de abordar certos temas, como ser gritante a representação das religiões de matriz africana serem retratadas de forma exótica, estranha.
Com um tom teatral, uma mise-en-scène minuciosamente construída, consegue transpor uma atmosfera fantasmagórica, de um cinema fantástico instigante – em alguns momentos, aquele casarão recorda a casa de “Os Outros” (2001). Contudo, o uso de um tom realista deixa esse potencial surreal de lado, sendo usado em momentos chaves, mais como um truque do que como narrativa. Marco Dutra em seus longas anteriores soube administrar assertivamente o linear entre o real e o fantástico, contudo, aqui aparenta se perder na pretensão de ser urgentemente atual, ter um discurso que seja relevante. Essa ênfase de ser relevante apequena a narrativa, e torna o filme frígido, insólito.
Como dito anteriormente, o longa esteve presente em Berlim e teve opiniões bastante divisíveis. Não por acaso, denota mais um problema de ser um filme restrito a um determinado público: fala diretamente com o brasileiro, o minimamente politizado ou antenado com questões de classes. O estrangeiro sem saber nada sobre o Brasil, deve se sentir excluído ou mesmo inerte a toda estória. As imagens em si, por mais opulentas que sejam, são vazias, plásticas, para um público estranho ao Brasil ou mesmo a esse tipo de filme.
Todos estão mortos, porém seus fantasmas caminham entre nós. É a história brasileira que está presente a cada dia, deve estar ainda mais. Podemos compreender quem verdadeiramente somos, como nação e povo, se olharmos quem nós erámos, incluindo reconhecermos o quanto de crueldade, genocídio e exploração marcou o processo de constituição da sociedade brasileira. É uma proposta de resgate histórico essencial pelo qual o país precisa passar. Uma intenção muito bem vinda de “Todos os Mortos”, mas que ainda assim carece de ser pensado mais como cinema, e menos meramente como discurso. Um grande potencial, porém, um resultado aquém.
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