Viver ou existir? Meu segundo dia na atual edição do FICBIC reservou uma grande surpresa e os devaneios de um dos mais duradouros nomes do cinema nacional. Duas perspectivas e propostas completamente diferentes, no entanto, é incrível como ambos os filmes do primeiro dia completo na programação do Festival conversam de maneira tão semelhante, se não entre si, com quem os assiste.
O primeiro filme de minha noite foi Pikadero, co-produção Espanha e Reino Unido roteirizada e dirigida por Ben Sharrock. O filme retrata a vida de um jovem casal, quase na casa dos 30 anos, que vive na Espanha. Porém, devido à crise econômica que assola o país, os dois moram com os pais e têm uma dificuldade enorme para encontrar um lugar onde possam consumar sua relação.
Eis, então, que a tensão sexual entre os dois cresce cada vez mais. O que faz com que os dois cogitem lugares públicos normalmente usados para tais fins, lugares estes cuja habitantes locais chamam de Pikadero. Ainda assim, a consumação pode não ser tão fácil quanto o esperado.
Enquanto em um primeiro contato, a impressão é precisa, trata-se de uma comédia. Em parte é, e eis a razão do funcionamento tão regular do filme de Ben Sharrock. O que mais impressiona é o quão longe passa da vulgaridade, apesar de sua proposta. Mas as nuances que o filme demonstra possuir são ainda mais impressionantes.
Esteticamente um deleite, o trabalho de Nick Cooke, diretor de fotografia, traz à Pikadero uma beleza extra, cuja diretor do filme sabe utilizar para proporcionar recorrentes gags visuais, que aproveitam da profundidade de campo para explorar tanto tais gags como próprios elementos fundamentais da narrativa, criando um filme que funciona além do primeiro plano e além de um único ponto focal. A atenção é requerida por toda a composição dos enquadramentos.
Mas tais gags só funcionam porque são bem pensadas, trabalhadas e executadas. Proporcionalmente indicando a qualidade existente no roteiro. Ferramenta que nos presenteia com personagens cuja jornada se revela um prazer de acompanhar.
Os principais nomes no elenco, Barbara Goenaga, Joseba Usabiaga e Lander Otaola também colaboram, dando a seus personagens uma naturalidade que auxilia na fluidez de Pikadero, tornando a obra em um projeto ainda mais interessante. Assim o é porque deles não é requerido somente a funcionalidade das piadas, mas um quê de drama.
Porque a grande reviravolta de Pikadero surge quando, o que é a temática de seu segundo plano, a crise econômica se faz abalar nos personagens. Ainda que não tão pronta e praticamente, mas os fazendo questionar as próprias regras da vida. Desencadeando no filme, portanto, uma comédia existencialista.
Com seus personagens naturais, é possível até nos reconhecermos neles, e em seus questionamentos. A paixão, nem tanto a de um pelo outro, mas principalmente dos sonhos que colocam a sua frente, é arrebatadora. Porque uma escolha é viver, mas parece somente subjugar à existência, nada além. Aí o filme não só questiona por si só, mas nos leva junto, em uma jornada que pondera dezenas de milhares de dias iguais, ou aquele exato algo além.
O segundo filme da noite foi uma viagem estética e narrativamente onírica. Possivelmente do melhor que o cinema do carioca e icônico Julio Bressane tem a oferecer. Em Beduíno explicação qualquer parece ser complicada, mas é descomplicado o deslumbramento com o pensamento depositado a nossa frente.
Uma jornada subconsciente ou ao subconsciente, tanto faz como tanto é. Alessandra Negrini e Fernando Eiras interpretam, aparentemente, um casal que reflete sua própria existência e, por consequência, também a nossa. Numa ensaística recheada de devaneios, os dois se tornam múltiplos personagens.
A contundência maior de Julio Bressane parece estar no olhar que lança, sobre o que quer que seja. Assim, abre-se Beduíno com um olhar, literalmente, pelo buraco da fechadura, numa quebra de perspectiva que convida à metalinguagem cinematográfica. Espiamos o cerne do espetáculo, descobrimos pelo vão o todo de uma estrutura de algo, de certa forma, irreal.
E o espetáculo é um dentro de outro espetáculo. O da vida. Deles ou da nossa? A reinterpretação de personagens dentro de personagens, ou a simples exposição de fragmentos do ser, constituem quem são as representações dos personagens de Negrini e Eiras. Ainda assim, uma incógnita.
Afinal, não seria a vida, supostamente real, uma encenação de algo que ainda não compreendemos? Portanto, uma afronta ao bom-senso, evento denominado como tal por um dos personagens, é tão assim uma afronta quanto uma confirmação dos paradoxos existenciais de composições por nós, e sobre nós, subjugadas.
Quebrar paradigmas, mesmo dos mais imperceptíveis, parece uma missão de Julio Bressane em Beduíno. O resultado é admirável, num sentido que abusa do significado da palavra, com razão. Pois há de se admirar aquilo que a obra pretende abordar, retratar e estudar. Não é de fácil compreensão, se é que possível se compreender ao todo, o todo.
Não é tanto atirar no escuro, quanto tatear no mesmo. É partindo de uma certeza incerta que a vida progride, tanto em Beduíno quanto na encenada realidade da vida verídica. Se é que algum dia algo tal existiu… O espetáculo é a vida, ou a vida é o espetáculo? Então uma vez mais: viver ou existir?
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