“O Menino e a Garça” (“Kimitachi wa Dō Ikiru ka”, 2023); Direção: Hayao Miyazaki; Roteiro: Hayao Miyazaki; Elenco: Soma Santoki, Masaki Suda, Aimyon, Yoshino Kimura, Shōhei Hino, Ko Shibasaki, Takuya Kimura; Duração: 124 minutos; Gênero: Aventura, Drama, Fantasia; Produção: Toshio Suzuki; País: Japão; Distribuição: Sato Company; Estreia no Brasil: 22 de Fevereiro de 2024;
É sempre um prazer e ainda maior privilégio poder assistir a um filme inédito de Hayao Miyazaki e do Studio Ghibli nos cinemas, até porque mesmo quando não estando em sua melhor forma, seja o cineasta ou qualquer filme de seu estúdio, há sempre algo de especial nessas produções. “O Menino e a Garça”, indicado ao Oscar de Melhor Animação, tem exatamente esse algo especial, uma sensação mágica que ainda é realçada por encontrarmos Miyazaki de maneira bastante inspirada, num filme que já começa a dizer a que veio desde o primeiro momento. Contando a história de Mahito, um jovem que se vê desamparado após a morte da mãe em um incêndio num hospital de Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial, e que por consequência disso precisa se mudar para o interior do Japão, indo morar com seu pai e a irmã de sua mãe, numa mansão recheada de histórias e mistérios que envolvem sua família, inclusive uma Garça Real em quem o garoto parece despertar extremo interesse. Assim, através de uma aventura que tem vida própria, Miyazaki aproveita para contar uma história recheada de significados e reflexões sobre luto, cicatrizes e a fluidez das relações em nossas vidas e a consequência de nossas ações uns para os outros.
Algumas coisas já ficam claras desde o início em “O Menino e a Garça”, quando num despertar desesperador, Mahito corre em disparada pelas ruas de Tóquio em meio a sombras e chamas, em uma animação que remete diretamente ao estilo do expressionismo alemão, uma das linguagens mais eficazes para se retratar os horrores da Segunda Guerra Mundial. Dali em diante Miyazaki mescla isso em alguns momentos, e se atém ao seu estilo marcante, com traços que por vezes fazem dos seus personagens amálgamas que remetem a outras coisas que não pessoas, num universo que reflete justamente o processo pelo qual o protagonista atravessa e que, por vezes, nada parece fazer muito sentido a primeira vista, enquanto resguarda um vislumbrar de fantasias ao qual a mente divaga. E cada vez mais o filme de Miyazaki mergulha nesse lado fantasioso para desenvolver sua história, conforme a aventura vai ganhando corpo. Se há algo que serve como uma ponte entre fantasia e “realidade”, e ajuda a nos envolver e investirmos emocionalmente na história desses personagens, certamente o elemento fundamental é a trilha sonora de Joe Hisaishi, que é de uma riqueza extrema e nuances que vão desde uma sensibilidade tocante a criação de um suspense que tornam “O Menino e a Garça” num filme ainda mais complexo pela maneira na qual as composições de Hisaishi conversam conosco enquanto traduzem perfeitamente bem os sentimentos do filme.
Algo que parece completar, ou contemplar, alguma falta de desenvolvimento da relação de alguns personagens, especialmente mãe e filho, que parece um pouco escanteada em prol de tantos outros acontecimentos, mas que “O Menino e a Garça” quer fazer parecer tão importante quanto. É que há uma abundância de ideias e pouco interfere na totalidade do filme, que se mostra uma deliciosa e tocante experiência do início ao fim, tendo momentos ultra poderosos e de uma identidade visual belíssima e singular, especialmente o clímax do filme de Miyazaki, que reserva alguns dos momentos que talvez se tornem dos mais belos e marcantes em sua carreira, pois é esse o nível deste seu filme. “O Menino e a Garça” equilibra muito bem a ingenuidade de um jovem em luto, enquanto trabalha de forma delicada o que há de mais pesado nesse estado de despedida e como esses momentos nos moldam e refletem não só nossas ações, mas nossa convivência, e até existência, e como o luto ecoa ao redor de todos nós, seja com laços que formamos ou que se vão, ou na forma como afetam aquilo que, de fato, somos.