A quarta noite (já!) de FICBIC foi com dois opostos, não só em continentes e hemisférios, mas também em suas funcionalidades. Afinal, enquanto um disse tanto sem falar muito, outro falou muito sem dizer nada. Exibidos não necessariamente nessa ordem.
A começar por Sin Norte, filme dirigido pelo chileno Fernando Lavanderos que retrata a jornada de Esteban (Koke Santa Ana), um designer cuja namorada, Isabel (Geraldine Neary), o deixou há pouco tempo e partiu em viagem ao Norte do Chile. Ele vai atrás dela, mas suas motivações, entretanto, ele sabe tão bem, ou não, quanto nós, o público do filme.
Esse é um dos principais empecilhos para se acompanhar a jornada do personagem. Até porque se parte de lugar algum para lugar nenhum. Numa longa viagem que, se agrega algo ao personagem principal, pouco se faz transparecer. O que até certo ponto, no entanto, pode ser aceitável, mas no caso de Esteban, um personagem tão falho no roteiro, não há perdão que salve. A torcida contra ele, em diversos momentos, é mais que um fato corriqueiro.
Assim, partindo de motivações infundadas, se é que elas sequer existem, o filme de Fernando Lavanderos se torna um desafio, ainda mais quando o diretor parece questionar suas próprias escolhas para a realização de sua obra. Pois, enquanto posa como uma ficção, a verdade é que Sin Norte está muito mais para um híbrido, claramente construindo um perfil das regiões chilenas pelas quais percorre, praticamente constituindo uma etnografia.
Porém, uma vez mais o personagem de Esteban se faz um empecilho. Porque nessa faceta basicamente documental que Sin Norte acaba por assumir, o personagem interpretado por Koke, que não exibe carisma algum, se torna quase que um investigador da vida alheia, mas um que, neste caso, não é bem-vindo, e tampouco exerce sua função como devia.
Nessa definição indefinida sobre ficção e documentário, Sin Norte tenta estabelecer um questionamento filosófico sobre a vida nos tempos atuais, não à toa por um momento ou outro pode até lembrar, ligeiramente, Medianeras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual, mas sem sequer um terço da audácia ou sagacidade deste.
Porque Sin Norte não consegue ser sutil o suficiente a ponto de somente conduzir a portas que levem o público a questionar a si próprio. Em contrapartida, é verborrágico ao extremo em pensamentos e devaneios nos quais não sabe se aprofundar com o mínimo de sensibilidade.
O resultado é uma análise superficial de uma crise existencial que não se consegue estabelecer de forma digna, com pensamentos cuja filme é apenas capaz de flertar. Com exceções pontuais, uma beleza extrema que só se expõe quando as locações exercem grande parte do trabalho, mostrando que Fernando Lavanderos, aqui, só é capaz de mostrar o quando seu filme está de acordo com o título.
A vitória de Bogdan Mirica no Festival de Cannes esse ano não se deu à toa, ainda mais se considerando que Dogs (ou Câini) é o primeiro longa-metragem roteirizado e dirigido pelo romeno. Uma estreia assim é o desejo de muitos. E é interessante como Dogs consegue retratar um cenário contemporâneo da Romênia ao mesmo tempo em que cria um thriller de tensão quase palpável.
É hipnotizante como Bogdan Mirica nos conduz em Dogs à um terreno herdado por Roman (Dragoș Bucur) após a morte de seu avô, quem há muito ele não via, nos proporcionando uma travessia através dos véus que obscurecem as atividades ilícitas que ocorrem na cidade onde estão as terras. Estas que agora, aparentemente, pertencem a Roman.
Comparações com Onde Os Fracos Não Têm Vez (No Country For Old Men), filme dos irmãos Coen, ao contrário de serem injustas, só enaltecem o trabalho de Bogdan Mirica. Porque, não se deixando enganar, ainda que beba de tal fonte e tenha pontuais semelhanças, Dogs tem uma identidade individual forte o suficiente para se estabelecer aparte.
Tudo numa crescente que se dá desde o primeiro momento no filme, quando Dogs demonstra saber se apropriar muito bem da linguagem cinematográfica. Culminando algumas vezes em longos silêncios que dizem mais sobre os personagens do que os próprios diálogos. E parece que são nas sutilezas que Dogs fala mais alto.
Recheado de metáforas, Dogs utiliza seus personagens de maneira inteligente, cada qual com suas características muito bem estabelecidas e motivações convincentes, e que se contradizem de maneira a causar conflitos não só por vezes físicos, mas muito fortes intelectualmente.
O que faz com que reine a tensão, ainda mais porque Bogdan Mirica consegue estabelecer ela perfeitamente bem através da linguagem de seu cinema. Sem pressa, problematiza as situações e as desenvolve no ritmo necessário, exatamente de maneira condizente com sua proposta, atingindo de forma plena o objetivo que possui com seu filme.
Aí o resultado é um filme brutal, porque por mais que não seja repleto de violência gráfica, é nisso que reside a chave para compreensão das intenções de Dogs. Porque se há, em determinado momento, tal violência, ela é a consumação de algo que, até então, somente estava por pairar sobre o ar, como uma incógnita de um destino futuro ainda desconhecido.
Pondera, portanto, as intempéries às quais o ser se expõe, e é exposto para, no mundo, na sociedade. Rende a maior reflexão o fato de se ter um único cachorro na trama e como centro dela. Qualquer comparação não é mera coincidência e, no final das contas, projeta-se em Polícia (a cadela herdada por Roman), possivelmente, mais que somente uma anedota, mais do que apenas uma singela ironia. É um código de moral que se estabelece e se quebra de maneiras muito semelhantes. Uma dualidade, da qual divindade alguma pouco se importa, mas que teme, assim como os tementes, a ele.