Casa não é um lugar, é onde está o coração. Uma frase clichê que você provavelmente já deve ter ouvido diversas vezes. “Casa”, novo documentário de Letícia Simões -diretora que retorna ao Olhar de Cinema após ter vencido o prêmio de Melhor Filme ano passado, na Mostra Outros Olhares com seu “O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva”, tem um pouco dessa frase. Talvez, seja até sua síntese, por mais que o título esteja também integrado a uma moradia que habita a memória da diretora-protagonista-instigadora. Contudo, é na forma como explora sua relação maternal, primeiro com sua mãe e, depois, com a mãe desta (sua avó), que a frase ali no início se faça presente no pensamento. De forma simples, aliás. Pois, o filme de Simões escapa do lugar comum, dessa simplicidade de ser reduzido apenas a um clichê. O que vemos aqui é orgânico, é um olhar sobre uma história extremamente pessoal feito universal, onde é possível se identificar com essas pessoas reais, de carne e osso, com seus defeitos, suas virtudes, suas paixões e suas dores.
Letícia não mede esforços, em cena, para capturar aquilo que deseja. Uma autora, no sentido cinematográfico da palavra, exímia, e por isso mesmo instigadora, e não investigadora. Afinal, Letícia instiga suas personagens, ela própria inclusa, a se exporem, a expor essas memórias que marcam gerações, que vêm como uma herança num efeito cascata, mas também trazem suas virtudes. O mais impressionante é como “Casa” tem a capacidade de enfrentar tudo isto com clareza, todo o olhar sobre os laços familiares, toda a relação entre essas três mulheres, essas diferentes gerações da família da realizadora, se fazem afetivas ao espectador, porém sem recorrer a saídas fáceis, é algo que se desenvolve com precisão tal que, quando nos damos conta, estamos diante do estouro de fogos de artifício que abrem portas a um novo florescer, ainda mais esclarecido dessas relações, ainda que, em algumas, o rancor acumulado ao longo do tempo seja difícil demais de se superar.
Mas é capaz, por exemplo, de apaziguar o ódio sentido pela cidade natal, uma Salvador cuja faceta de lar dificilmente se apresentou para a realizadora. Dito e feito, e assim, mãe e filha se encontram na orla do mar, prontas para o mergulho, uma pronta para se abrir a outra, como o espectador ao filme. Livre de amarras, mesmo ciente de que o percurso não é fácil, muito menos agradável, conscientes de que um corte para o preto não nos salvará, nem encerrará nossas histórias, cena após cena da vida real, a habitamos em cada momento, nossa morada única, e resistimos, até o fim. Só mais uma parte do processo.