A Cidade do Futuro (2016); Direção: Cláudio Marques, Marília Hughes; Roteiro: Cláudio Marques, Marília Hughes; Elenco: Milla Suzart, Gilmar Araújo, Igor Santos; Duração: 75 minutos; Gênero: Drama; Produção: Cláudio Marques; Distribuição: Vitrine Filmes; País de Origem: Brasil; Estreia: 12 de Junho de 2016 (5º Olhar de Cinema)*; Estreia Comercial: 26 de Abril de 2018;
A Cidade do Futuro revela que, sim, a verdade é mais estranha que a ficção. Porque somos capazes de confundi-la, porque nos vemos capazes de acreditar que certas realidades não são possibilidade, porque a ficção sempre fará mais sentido. Vivendo num Estado que sofre com sua história, que arrasta as marcas do passado em seu cotidiano, que flerta com o conservadorismo frente a uma era de nova possibilidades, nos vemos perplexos com insensatez alheia de simplesmente aceitar. Essa necessidade é retratada com urgência máxima aqui, em um filme no qual não somente celebra a pluralidade do brasileiro, porém, ao mesmo tempo que entalha seu nome nela, enaltece o quanto a cultura de nosso país é tão deslumbrante.
A Cidade do Futuro conta a história, em grande parte real, de Igor (Igor Santos), Gilmar (Gilmar Araújo) e Milla (Milla Suzart), que vivem em Serra do Ramalho, no Sertão da Bahia. Essa cidade, nos anos 70, era comumente referida como o que dá título ao filme, pois era para ela onde os desalojados por conta da construção da represa de Sobradinho acabaram sendo realocados. As promessas feitas para aquela geração de moradores, nunca cumpridas, parecem se assimilar à da geração desses três personagens, que acompanhamos quando eles veem ameaçado o futuro da família que estão dispostos a ser.
Gilmar, professor de história; Milla, co-fundadora de um grupo de teatro local; Igor, vaqueiro, jovem em busca de um emprego fixo; uma realidade comum. Quando Milla engravida, não se sabe, ou se quer saber, se o filho é de Gilmar ou de Igor que, por sua vez, são amantes um do outro. Não polêmico o suficiente, os três convivem juntos, compartilhando do amor que tem um pelo outro. Além disso, não somente vivem em um relacionamento fechado entre os três, mas se deixam experienciar a vida com quem bem entenderem. Uma liberdade que desafia não só a ideia de exclusividade no relacionamento, mas padrões que moldam nossa sociedade. Porém, como fica evidenciado em A Cidade do Futuro, essas restrições morais sem convicções argumentativas lógicas se esquecem do indivíduo, que é o cerne da sociedade.
Numa região muito interligada a costumes típicos e apegada à tradição, o trio se encontra em um momento destoante da realidade que seus concidadãos imaginam viver. Milla, Gilmar e Igor são três cidadãos comuns de Serra de Ramalho, não à toa nosso primeiro vislumbre de cada um deles acontece de forma a nos fazer encarar seu cotidiano, anterior ao que causa a revolta da cidade. A cena que abre o filme é, posteriormente, reconstituída em meio ao caos, ali vemos o quanto a mudança está apenas naqueles que se deixam ser vencidos pelo preconceito, mesmo que muitas vezes ele provenha de um embasamento que sequer aceita o tempo presente em que vivemos.
E o que vivemos é a realidade? Há determinada cena no filme, na qual a mãe de Gilmar assiste à televisão na sala de sua casa. Temos a vertente histórica pela qual Gilmar nos conduz, mas naquele momento, dentro de sua própria casa, sua mãe vivencia através da televisão, em todos os canais, uma cultura que não é sua, uma cultura que não condiz com sua realidade. Porque nos atemos a ideais que nos são vendidos, não porque precisamos deles, mas porque encarar a própria realidade em uma tela, como dizia Glauber Rocha, é algo que o povo teme em fazer. Assim compramos as ideias alheias.
É vendo A Cidade do Futuro que chegamos à conclusão do quanto consumimos que pouco diz a nós sobre a nossa realidade. É um dos motivos de o filme conseguir uma conexão tão forte com o público. É um dos motivos, também, do filme conseguir enxotar o preconceito, seja ele qual for. A Cidade do Futuro explora nossa cultura e nossa história não só em sua condição idílica, daquilo o que queremos acreditar que ela é, mas sim daquilo em que nos recusamos a perceber do que é feita. Eis, então, a pluralidade que constituí nossa nação, que não pode ceder à impulsos que neguem essa verdade.
Acontece que, como filme que não tem medo algum de colocar o dedo na ferida, A Cidade do Futuro esbarra em algumas situações que se mostram mais mecânicas, como a analogia entre passado e presente na situação da Cidade do Futuro. Algumas atuações duras demais também influenciam, porém, não como prejudiciais, mas carentes de um melhor aproveitamento para elevar A Cidade do Futuro a um patamar de linguagem cinematográfica incontestável, se comparando com qualquer que fosse a produção alheia. São estes, entretanto, pequenos deslizes provenientes da mesma realidade que o filme nos faz encarar.
O baixo orçamento é uma condição imposta aos realizadores, consequência da dificuldade que é fazer cinema em nosso país, que quando faz grandes obras, muitas vezes não as vê recepcionadas como deveria, por parte do público de massa. O que é um possível destino de A Cidade do Futuro, pois não só a temática LGBT se faz presente aqui, com um discurso de contundência e pontualidade necessária, mas também do feminismo, do empoderamento da mulher sobre sua própria vida, da valorização da simplicidade de nosso povo e a riqueza que provém disso. Realidades que muitos relutam em aceitar. Portanto, é assim que, dando voz à nova geração e necessidades da sociedade para adequação a essa urgente realidade, Serra do Ramalho fez jus a sua alcunha, finalmente se tornando a cidade do futuro.
A Cidade do Futuro – Trailer Legendado:
*Crítica publicada originalmente em Junho de 2016, no site Fábrica de Expressões.