“Ainda Estou Aqui” (2024); Direção: Walter Salles; Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega; Elenco: Fernanda Torres, Luiza Kosovski, Selton Melo, Valentina Herszage, Gabriela Carneiro da Cunha, Guilherme Silveira, Pri Helena; Duração: 135 minutos; Gênero: Biografia, Drama; Produção: Maria Carlota Fernandes Bruno, Walter Salles, Rodrigo Teixeira, Martine de Clermont-Tonnerre; País: Brasil, França; Distribuição: Sony Pictures; Estreia no Brasil: 07 de Novembro de 2024;
Walter Salles é uma porta plausível para o sonho brasileiro de ganhar um Oscar, mais especificamente por conta de sua colaboração com Fernanda Montenegro em “Central do Brasil”, lançado em 1998 e indicado a duas categorias na edição de 1999 da maior premiação da indústria cinematográfica. Feitos que tenta repetir agora com a filha da atriz, Fernanda Torres, que protagoniza “Ainda Estou Aqui”, só que com a intenção de ter mais do que apenas as indicações, evitando um novo trauma nacional que foi a derrota de Montenegro e é recontado como se tivesse sido experienciado ao vivo por muitos que, assim como eu (nascido em 1993), era uma criança ingênua a quaisquer dessas coisas naquela época. Só que tudo envolvendo tal filme foi tão difundido nos anos seguintes que se tornou algo marcante, talvez até pelo espírito de esperança trazido pela retomada do cinema nacional. É uma relação quase intrínseca entre os dois filmes, mas que cerceia “Ainda Estou Aqui” de uma expectativa que é diferente, e acredito que esse sentimento reflete, de certa forma, o discurso do filme e seu contexto, que ecoam muito bem num cenário contemporâneo em que enfrentamos a consequência de não termos erradicado por completo os pilares que causaram tanto horror com a ditadura militar no Brasil.
E horror é algo que, a princípio, não existe em “Ainda Estou Aqui”, que começa exibindo o cotidiano descontraído e praiano da família protagonista nos anos 70. Adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva, o filme reconta o momento que redefiniu essa família durante a ditadura militar, que gozava, aparentemente, de muita alegria em sua casa à beira-mar no Rio de Janeiro. Ali, recebiam amigos para confraternizar, eram todos risos e sonhos visando um futuro brilhante, num ambiente descontraído e de muita união, com os cômodos da casa sempre cheios e congestionados, ocupados tanto por pessoas como pela luz, que adentra à vontade na casa dos Paiva através da direção de fotografia de Adrian Teijido, num trabalho que contrasta muito bem o antes e depois da família, assim como de outros elementos técnicos que ressaltam com naturalidade essa mudança. Algo que não é repentino, mas se faz sempre presente ali, em pequenas quantidades, é um receio, um medo que parece a espreita, uma sensação de inquietação que é gerada por um burburinho aqui ou ali, pequenos atos, notícias ou encontros que, aos poucos, começam a afetar a plenitude dessa família. Até que a escuridão, enfim, se faz presente.
É aqui que o trabalho de Walter Salles e Fernanda Torres começam a tecer a grandeza que tanto impacta em “Ainda Estou Aqui”, pela forma como transitam entre a miríade de sentimentos que toma conta do filme, mesmo que algumas coisas sejam feitas de forma exageradamente clichê, e onde a nostalgia de algo aconchegante dá lugar ao sentimento de despertencimento, com a ausência e o vazio se fazendo sentir a todo custo e tornando-se desalentadores. O alívio, que parecia algo inalcançável, é também regado a melancolia, porque é essa a tônica que um regime devastador implementa. E a efetividade disso em “Ainda Estou Aqui” é tanto pela condução de Salles, como pela atuação de Fernanda Torres, que não é feita de exageros, mas sim de uma condição que parece transparecer simplicidade, e ela torna sua Eunice Paiva numa personagem de força incomparável, porque é como ela entende que precisa construir a resiliência dessa figura, a quem tanto querem oprimir e ver aos prantos, mas que opta por sorrir. Esse conflito que a atriz consegue estabelecer, entre segurar um choro e abrir um sorriso, em conjunto com esse clima soturno que toma conta do filme, são os grandes trunfos de “Ainda Estou Aqui”.