Há o que se dizer sobre “Mãe só há uma”, novo longa da consagrada diretora Anna Muylaert.  A obra é composta por vastas elipses temáticas, se sustentando num escopo geral: sobre identidade.  Baseado no caso real do menino Pedrinho, sequestrado em Brasília durante os anos 80, tendo sido encontrado anos depois por sua família biológica. Muylaert usa isso como base para estudar sobre essa nova geração brasileira que não se limita em definição de gênero ou sexualidade, tendendo a ser mais liberal, consciente, plural. Antítese justa desse patriarquismo conservador influente até hoje na composição da sociedade nacional.

Contudo, o longa também não se restringe ao mérito de dissertar sobre juventude no âmbito da construção de sua identidade. Vai além em retratar o choque dessa nova geração com a antiga. Um modelo nitidamente falido de família/sociedade/país versus um novo em constante construção e mudança. Anna Muylaert faz um filme de uma singularidade tamanha pelo fato de ser tão plural em seu escopo. É necessário salientar que aos espectadores que esperam ver um filme na mesma vibe otimista de “Que Horas Ela Volta?” vão se decepcionar, pois há um tom melancólico do início ao fim da projeção. Entretanto, o debate social está novamente presente de forma concisa e instigante.

a vida de Pierre (Naomi Nero) desmorona após descobrir que fora sequestrado da maternidade, sua família biológica o busca tem mais de 17 anos, até que enfim a busca se encerra com êxito para eles, contudo com total perda de identidade para o menino, que não aceita deixar de ser Pierre para ser Felipe, tão pouco abandonar sua família de criação. Sua “nova” família é oposta a sua “antiga”, integra a classe média paulistana, contempla valores patriarcais antigos, nitidamente valoriza as aparências. Pela busca longa, os pais (Matheus Nachtergaele e Dani Nefussi) idealizavam o filho, se deparam talvez com oposto daquilo que buscavam: O jovem apresenta um estilo andrógeno, é bissexual, veste vestido… Enfim, ambos não se identificam, mas são obrigados a conviver e tentar incluir na vida um do outro.

É muito interessante como as sucintas 1h e 22 minutos despertam para vários caminhos e interpretações. Ao meu ver, a diretora tenta desconstruir o tradicionalismo familiar para evidenciar sua falência, gerando por fim uma nítida perda de identidade para os membros dessa nova geração inseridos no contexto. Tanto a figura de Pierre quanto de Joca (Daniel Botelho), filho mais novo do casal, mostra como os dois encontram-se cada vez mais isolados e indiferentes a tudo.  Joca, principalmente, é aquele que segue uma cartilha defasada, o levando ao isolamento e apatia. A chegada do novo irmão apenas torna mais esclarecedora sua posição figurativa dentro daquela família, que valoriza as aparências e “selfies”.

A metalinguagem é vinda de forma inusitada: O título do longa se deve ao fato das suas mães do filme serem interpretadas pela mesma atriz, Dani Nefussi, em dupla performance difícil de se fazer, sobretudo pelo fato de não aderir ao vitimismo. Pouco nos é dado sobre a mãe de crianção de Pierre, porém dá para perceber o estilo liberal -não libertino, não confundam- dela em detrimento da outra mãe, a biológica. Essa é super controladora, tenta agradar o filho acatando todas suas demandas, num estilo meio de barganha.

Em momento decisivo,  percebemos o cerne da questão sendo posta em evidência: A família biológica se esvazia, perde sua identidade por não conseguir incluir ainda mais Pierre/Felipe, e este não se identifica naquela família e visa reencontrar a si e seu antigo cotidiano. Não é posto em debate a questão do crime cometido pela mãe de criação, o que é debatido sim como nós construímos nossas próprias famílias na proporção que escolhemos com quem conviver. Anna Muylaert, portanto, estabelece que o antigo modelo foi exaurido e substituído por um no qual temos o direito de construir nossa própria família, independente do sexo, sexualidade, identidade de gênero, religião etc dos membros. É extremamente corajoso tal abordagem, pois sintetiza uma demanda constante nos jovens de hoje em dia, eu incluso.

Particularmente, eu não tenho identificação e nem simpatia por grande parte da minha família biológica, cresci normatizando tamanhas hipocrisias, acreditando que era natural devido ter nascido naquele meio. Não apenas eu, como muitos os quais se identificam com essa situação, não somos obrigados, como temos a liberdade e o direito de conviver apenas com quem queremos. É correto o longa deixar claro que a família é, como todas as relações possíveis entre seres humanos, uma construção social, devendo haver sintonia e identificação para estas serem fecundas e agregadoras.

Outra coisa que me agradou foi o fato de Muylaert tratar com normalidade a questão da identidade de gênero e sexualidade, um exemplo inclusive que as pessoas devam seguir. O choque de algumas pessoas que estavam na minha exibição vaiando o close na cinta-liga do protagonista foi uma reação de setores incomodados com as críticas recebidas pelo longa. Além de nós, jovens, buscarmos nossa identidade, queremos ter a liberdade para sermos quem somos, sem o direito a julgamentos e preconceitos. O Brasil -ou qualquer outro país civilizado – não pode permitir a existência desse conservadorismo preconceituoso, portanto é fundamental essa geração emergente se posicionar, chocar mesmo, impor suas pautas em prol da transformação social.

É difícil acreditar que Naomi Nero seja um estreante, pois sua atuação consegue ser completa, variando entre o contimento e a emoção. O ator constrói Pierre como um personagem de fácil identificação, proporcionando simpatia e empatia, tenho certeza que muitos outros atores tornariam o personagem simplesmente insuportável, porém ele faz um trabalho simplesmente soberbo. Fazia tempo que eu não via um ator, na condição de estreante, com tamanha garra e vigor. Simplesmente é um achado que esperamos para ver novamente em outros longas-metragens, o cinema nacional agradece. A direção de Anna Muylaert segue intimista e sensível, ela constrói com sua câmera um embate ao mesmo tempo que gera um debate, tendo ímpar sensibilidade para tal.

A família da patroa de “Que Horas Ela Volta?” tinha uma visão limitada de país, denunciada pela diretora. Agora ela amplia o horizonte e demonstra como as famílias seguem uma visão limitada para com seus filhos. “Mãe Só Há Uma” pode ser considerado como um retrato geracional, contudo vou além e digo que é um grito por liberdade e aceitação. De uma geração que quer fazer um novo Brasil nascer.

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