Com 40 anos de carreira em cinema de animação, diretor gaúcho terá sua carreira celebrada pelo evento serrano
Em sua edição comemorativa de 45 anos, o Festival de Cinema de Gramado presta homenagem a um de seus grandes amigos e incentivadores. Recebendo o troféu Eduardo Abelin, o diretor gaúcho Otto Guerra, que há mais de quatro décadas faz carreira no cinema de animação, marcará presença no Palácio dos Festivais para ter sua carreira celebrada pelo evento serrano. Destinado a diretores, cineastas ou entidades de cinema brasileiros, o troféu Eduardo Abelin foi criado em 2003 e já homenageou, em suas últimas edições, nomes como José Mojica Marins, Zelito Viana, Walter Carvalho e Arnaldo Jabor. Em 2017, a homenagem a Otto Guerra acontece no ano em que é celebrado o centenário da animação no Brasil.
Com longa trajetória em Gramado, Otto esteve pela primeira vez no Festival em 1984 com a produção “O Natal do Burrinho”, que lhe rendeu o prêmio de melhor filme na Mostra Gaúcha de Curtas. Desde então, o cineasta teve seus trabalhos premiados em outras seis edições do evento, sendo a mais recente em 2013, com o longa-metragem “Até Que a Sbórnia nos Separe”, vencedor dos prêmios de melhor filme pelo júri popular e direção de arte. “Nave Mãe”, “Novela”, “O Reino Azul”, “Treiler” e “As Cobras” foram outros filmes de Otto consagrados em Gramado. “Esse tipo de legitimação, quando pessoas da área reconhecem o teu trabalho, dá um significado, um propósito”, conta o homenageado.
Otto, que diz sempre ter priorizado o Festival de Cinema de Gramado como a primeira janela de exibição para os seus filmes de ficção, começa apenas agora a assimilar a importância de um prêmio honorário como o troféu Eduardo Abelin. “Minha primeira homenagem foi no Anima Mundi, aos 44 anos. Na época, pensei que eles estavam me matando cedo demais, mas agora o tempo passou, cheguei aos 60 e talvez esteja na hora de fazer alguma coisa porque já me sinto um guri velho!”, brinca Otto, que atualmente trabalha na animação “A Cidade dos Piratas”, baseada no trabalho da cartunista Laerte e com previsão de lançamento para 2018.
O 45º Festival de Cinema de Gramado acontece entre os dias 17 e 26 de agosto, com a entrega do troféu Eduardo Abelin para Otto Guerra marcada para a noite do dia 19 no Palácio dos Festivais.
VIDA ANIMADA
O cineasta e animador gaúcho Otto Guerra diz ser uma vítima da animação. “Quando estamos na adolescência, a sociedade nos cobra e a família nos pressiona. Tudo é sobre fazer dinheiro, mas eu nunca quis fazer concessões. Quando desenho, o mundo se transfere para dentro do meu trabalho, é uma coisa mágica. Fui uma vítima disso, não tive escolha”, conta. A consciência de que a animação seria um caminho sem volta veio aos 13 anos, durante uma viagem à cidade de Torres, no litoral gaúcho, quando Otto entrou pela primeira vez em contato com o trabalho de Hergé, o renomado autor de célebres quadrinhos como “As Aventuras de Tintim”. “Eu era um jovem, no litoral do Rio Grande do Sul, lendo uma revista portuguesa com quadrinhos de um cara belga. Foi aí que eu pensei: então isso existe mesmo! Não é loucura minha! É possível desenhar e chegar até as pessoas!”, lembra o homenageado do Troféu Eduardo Abelin.
Dali até o início da busca por uma carreira profissional foi um pulo. Aos 18 anos, já convencido de que esse era seu destino, Otto estava em São Paulo com quadrinhos de autoria própria embaixo do braço para bater na porta de editoras que pudessem se interessar por seu trabalho. A publicação nunca aconteceu, mas, dois anos depois de suas primeiras investidas no ramo, ele se deparou com a possibilidade de trabalhar com animações em produções audiovisuais. “Fiz um curso com um produtor argentino e, de repente, aprendi a fazer tudo. Eu falava com cliente, pensava o som, animava, fazia storyboard, direção de arte… Foi extremamente libertador descobrir que era possível viver pelas minhas próprias mãos, muito em função do trabalho realizado com a publicidade”, conta.
Muito maior do que qualquer estapafúrdia imaginação
Em termos criativos, o cineasta brinca que trabalhar com publicidade é ter que “vender a alma ao diabo e apenas desenhar personagens felizes, sorridentes, pasteurizados e coloridos”, mas também defende a ideia de que esse é um ramo necessário para se manter financeiramente no mercado. Aliás, foi com o dinheiro que ganhou fazendo publicidade ao longo de seis anos no início da carreira que o gaúcho comprou o seu primeiro equipamento 35mm para ter os filmes em bitola profissional e conseguir se equiparar à concorrência. Se a conquista do equipamento 35mm marcou a entrada definitiva da Otto Desenhos Animados no mercado há mais de 40 anos, a exibição de “O Natal do Burrinho” no Festival de Cinema de Gramado de 1984 abriu “uma janela do nosso trabalho para o mundo”, conforme cita o homenageado. “O que aconteceu em Gramado foi muito maior do que qualquer estapafúrdia imaginação. Fui de Madri a Havana para exibir o filme por causa daquela sessão e, desde então, sempre priorizei esse evento que, durante muito tempo, foi o único ponto de partida de muitos cineastas do Rio Grande do Sul. Muita coisa aconteceu ao longo desse tempo, sem falar que hoje os festivais de cinema se multiplicaram no Brasil, mas sempre quis que Gramado fosse a primeira janela dos filmes que produzi”, defende.
A busca pelo feijão com arroz
A partir das evoluções tecnológicas, Otto Guerra observa um incremento do número de animadores no Brasil, mas afirma que a expressividade da produção brasileira no gênero ainda é incipiente. “Hoje qualquer pessoa pode pegar uma imagem ou um filme da Disney e esmiuçar, ver com o microscópio como funciona, mas animação também é saber sobre atuação, música, física, filosofia, geografia, história. Os processos também são muito relativos: em um dia, é possível fazer 10 segundos de animação se um estúdio dispõe um milhão de dólares. Agora, se a animação é feita por apenas uma pessoa, é preciso um mês para produzir um minuto de uma animação mediana”, contextualiza.
Para Otto, também não é fácil fazer o que dizem ser o “feijão com arroz” das animações de grandes estúdios como Disney, Pixar e Dreamworks: “Para chegar nessa fórmula, eles demoraram 100 anos, passando por várias tecnologias e gerações. 100 anos! Eles são geniais! Eu sigo tentando fazer esse feijão com arroz!”. Pensando em um panorama mundial, ele prefere não elencar os países que melhor produzem animações. “Cada lugar tem a sua cultura: existe tradição no leste europeu, o [Hayao] Miyazaki faz coisas lindas no Japão, os canadenses trabalham outra vertente e por aí vai… Mas, na verdade, é difícil falar sobre características porque todos os humanos copiam. Ninguém é original. Basta pensarmos na língua que falamos. Nem ela é nossa! Nós nos apropriamos dela!”.
O quarto de infância de um jovem guri velho
Encarando cada filme de animação que realiza como um filho diferente (“talvez fazendo essa comparação as pessoas entendam o quanto eles são importantes pra nós!”), Otto Guerra hoje pode dizer que o patamar alcançado pela animação brasileira nos últimos anos se mistura com a sua própria trajetória. Seu último longa-metragem, “Até Que a Sbórnia nos Separe”, além de ser exibido nos mais importantes festivais do gênero, como Annecy e Ottawa, teve uma exibição em Burbank, na Califórnia, na sala de cinema da Dreamworks, impressionando a plateia composta por profissionais com alto conhecimento na área. “Todos eles ficaram até o fim da sessão – o que é raro – e ainda vieram perguntar como conseguimos chegar naquele resultado! Mal sabem que nós nos inspiramos neles!”, se diverte.
Para um “jovem guri velho”, como o próprio Otto se intitula, todas essas conquistas não são apenas resultado de talento, trabalho e dedicação ao longo de mais de quatro décadas, mas, também, a pura e simples paixão de uma infância sem fim: “as crianças desenham por natureza, seja em papel ou na parede, mas param aos nove, dez anos de idade. Comigo foi diferente. Eu nunca parei. Pelo contrário: o estúdio em que eu trabalho é uma extensão do meu quarto de infância”.
2018 – “A Cidade dos Piratas”
2015 – “Bruxarias”
2014 – “Castillo Y el Armado”
2013 – “A Pequena Vendedora de Fósforos”
2013 – “Até Que a Sbórnia nos Separe”
2006 – “Wood & Stock: Sexo, Orégano & Rock ‘n’ Roll”
2004 – “Nave Mãe”
1997 – “O Arraial”
1994 – “Rocky & Hudson”
1992 – “Novela”
1989 – “O Reino Azul”
1986 – “Treiler – A Última Tentativa”
1985 – “As Cobras”
1984 – “O Natal do Burrinho”
Foto de Capa: Edison Vara/Pressphoto