O diretor de Máquinas (Machines), em uma conversa após a sessão, faz questão de deixar claro que vem de uma família abastada indiana, ponto crucial para encararmos o documentário, e longa de estreia, de Rahul Julian, filmado e montado sem que sua família soubesse o trabalho que o filho estava fazendo. Detalhes que, apesar de soarem triviais, se justificam quando nos deparamos com certo acontecimento ao final do documentário.
Retratando uma fábrica da indústria têxtil indiana, o diretor observa com técnica meticulosa o trabalho e as condições miseráveis em que se encontram os trabalhadores. Torna-se óbvia, portanto, a justaposição que o título gera entre homens e as máquinas. Qual de ambos é, realmente, um ser mecânico?
Enquanto vamos nos aprofundando no âmago da produção têxtil ali, o documentário vai escalando seu nível de escrutínio. Intencionalmente, Rahul Julian passa a adquirir um tom mais indagador, questionando os trabalhadores sobre suas razões para estarem ali, por suportarem algo tão desumano quanto aquilo.
Enquanto pode parecer um olhar ingênuo, o cineasta na realidade demonstra uma sobriedade invejável na constatação de suas indagações, e os depoimentos ganham uma força natural ao longo do filme, entrando em cena no momento correto, quando são bem-vindas e delineando as figuras ali para além do que até então se via.
Na crescente de seu documentário, Rahul Julian então apresenta quatro diferentes pontos de vista. Um dos trabalhadores diz ser preciso uma união para melhorar as condições de trabalho. Outros dizem que já há união, assim como satisfação mesmo em meio a tais condições. O dono da fábrica descaradamente afirma não ter o que melhorar, pois influenciaria no coeficiente quantitativo do trabalho; pagar mais geraria uma ociosidade desnecessária.
Por fim, o questionamento mor: esse abastado que chega ali retratando com sua equipe a situação dos trabalhadores, questionando sobre reinvindicações e uniões, justiça aos trabalhadores e camponeses, causando alvoroço, está, de fato, fazendo o que para ajudar?
Em Corpo Estrangeiro (Jassad Gharib), infelizmente, nos deparamos com um romance que tenta esboçar uma sensualidade que simplesmente não se justifica. Pouco, de fato, se justifica no filme de Raja Amari. Desde o momento que Samia (Sarra Hannachi) emerge na praia, vinda de uma embarcação de imigrantes, com a cara limpa, ou até mesmo maquiada, à falta de estranhamento da personagem com esse novo mundo que a aguarda.
Enquanto a personagem tem em seu passado alguma obscuridade, em diálogos que revelam haver histórias que pareciam indicar uma posição contrária aos costumes tunisianos, se faz ilógica a adaptação de Samia ao novo país em que se refugia. Tudo no primeiro ato acontece, literalmente, em questão de dois dias. Quando chegamos ao final, e parecemos prestes a nos deparar com uma grande reviravolta, percebemos que há somente ingenuidade numa trama escancaradamente superficial.
Quando Leila, a personagem de Hiam Abbass, passa a abraçar a ideia de Samia viver com ela, da maneira como tudo se dá, parece inevitável remeter ao filme Jovem e Bela (Jeune & Jolie), de François Ozon. Apenas um indício de que já parecemos ter visto a isso antes. A ideia do preenchimento que Leila busca, porém, dá lugar a um triângulo amoroso insensato e que vai dali a lugar algum.
O tom que a princípio se fazia presente, retratando a presença desse corpo feminino em meio a refugiados homens, é deixado de lado pela ideia de sensualidade. Logo torna-se um romance barato permeado com tons de um suspense igualmente gratuito, numa narrativa que se mostra constrangedora. Raso e carente de um desenvolvimento mais delicado, Corpo Estrangeiro acaba por ser, em si, algo estranho. Um filme desencontrado que parece mais uma colagem de ideias soltas e que tem pouca, ou nenhuma, da relevância social que imagina.
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