É incrível como dois filmes sul-americanos e que fazem parte da Mostra Competitiva neste 6º Olhar de Cinema consigam ter visões tão contrárias uns aos outros. Ainda que Soldado devaneie enquanto possivelmente não percebe a bandeira que levanta, do outro lado Rey ficcionalmente gera um retrato consciente, ainda que em meio a loucura, que serve como uma severa crítica.
Soldado é um filme que de ordinário só não encontramos tal característica em sua fotografia. O apelo estético ao qual o diretor Manuel Abramovich está atento se faz o principal trunfo do documentário. Há momentos em que é impossível não se deslumbrar, ainda que por vezes seja só uma mera coincidência que conta com colaboração da natureza.
A Argentina, porém, tem sua grande parcela de sangue derramado por uma voraz ditadura militar. Algo pelo qual muitos dos países sul-americanos compartilham como uma amarga memória. Como se sabe, porém, há ainda resquícios do que há tanto se lutou para derrotar. No Brasil, por exemplo, é assustador como se tornou comum vermos cartazes pedindo por uma intervenção militar.
Soldado parece ingênuo em relação a tudo isso, ou simplesmente não se importa com os fatos. Não surpreenderia um dia descobrirmos que o documentário está sendo exibido nas salas de espera de alistamento militar na Argentina. Longe de demonizar a prática militar, ainda que seja necessária uma justificativa para a mesma, assim como uma revisão de sua utilidade em muitos casos.
É este questionamento, em relação a utilidade do exército, que delineia a sinopse de Soldado, mas quando acompanhamos a jornada de um jovem garoto entrando para o exército, vamos de lugar algum para lugar nenhum, restando somente um anseio do diretor pelo retorno de algo, somente para suprir essa aparente falta de propósito do Exército argentino contemporaneamente.
Por vezes é difícil discernir realidade de onírico em Rey. O filme do chileno Niles Atallah nos transporta ao século XIX, na aventura de Orllie-Antoine de Tounens, um francês que promoveu a união dos povos indígenas para a formação do Reino da Araucânia e Patagônia, estado nunca reconhecido.
Um diferencial do filme está logo aí, o ponto de vista que acompanhamos é, portanto, o de um colonizador, segundo a história, eleito pelas tribos que uniu como líder e, consequentemente, rei da região. Os ares de colonialismo se fazem muito mais presentes quando um febril Tounens se perde em meio a delírios, prometendo a si mesmo o estabelecimento de uma Nova França, título pelo qual também o lugar ficou conhecido.
Niles Atallah, entretanto, utiliza essa aproximação, e inclusive apropriação, do estrangeiro à cultura nativa de seu país como uma ambiguidade que ataca a ambos os lados. Enquanto o próprio país renega sua cultura nativa, indiciando os indígenas como selvagens insensatos, o colonizador vê ali a oportunidade de usar essas mesmas características como uma virtude.
Mas Rey vai além, conversa com o ser em seu estado mais íntimo, em contato com o primitivo, em contato com aquilo contra o que tanto lutou para manter escondido, sobre camadas que julgam o próximo, mas cuja ganância tornam inevitavelmente a derramar o sangue alheio.
Num trabalho de estética quase que completamente experimental, que flerta com o formalismo, Rey utiliza da linguagem cinematográfica para abordar o ato no qual sucumbe a humanidade e as mitologias que a caracterizam. Algo que transcende na alucinação de que o homem aspira a mais do que realmente é.