“Gorbachev. Céu” (Gorbachev. Heaven, 2021); Direção: Vitaly Mansky; Roteiro: Alexander Gelman, Vitaly Mansky; Elenco:–; Duração: 100 minutos; Gênero: Documentário; Produção: Vít Klusák, Natalia Manskaya, Filip Remunda; País: Letônia, República Tcheca; Distribuição: –; Estreia no Brasil: –;
Cada vez mais precisamos rever alguns momentos históricos e suas concepções. Um revisionismo graças a facilitação do acesso à fontes mais próximas dos eventos, algo que gera caos como clareia processos históricos. O fim da União Soviética é um dos eventos mais nebulosos no inconsciente coletivo, já que o ensino de história se restringe às medidas de dissolução mais famosas: Glasnost e Perestroika. Ambas assinadas por Mikhail Gorbatchov, que faz um memorando em forma de filme com “Gorbachev. Céu“, filme presente na mostra É Tudo Verdade deste ano.
Muito longe de ser uma biografia, a proposta aqui é bem clara: Esclarecer a ideologia daquele que foi responsável pelo fim da URSS. Apesar de não assumir, suas medidas de barganha para com o resto do mundo enfraqueceram o regime instável antes mesmo da morte de Stálin. A forma como Vitaly Mansky filma a figura está longe de uma sutileza: Um rosto formado por um espaço plenamente iluminado e outro obscuro. Os primeiros 20, 30 minutos prometem e arquitetam uma medida bem comum às figuras públicas manchadas – sem piada com a mancha vermelha da sua testa – na história. Uma possível humanização da figura política, algo como “além da cobertura midiática” tal qual ocorre com Margaret Tatcher constantemente.
Porém algo que é constatado durante todos os momentos, seja pelo próprio ou pelo entrevistador, é que o russo não possui a vilania explícita que a ex-primeira dama e outras figuras desse arquétipo biográfico se puseram. Gorbachev se define como um socialista que reconheceu um regime falido democraticamente, e está certo. É equivocado demais em um debate de 2021 não reconhecer as falhas dos exemplos práticos da esquerda, uma das poucas coisas em comum acordo entre as partes durante o filme.
Esse é o grande atrativo do filme, o embate entre as partes. Ao contrário da maioria desses últimos registros de grandes figuras, o diretor não se omite em questionar as contradições das falas de seu entrevistado. Esses momentos de conflito direto são dignos de nota, uma espontaneidade latente pelo fato da encenação não se alterar para tais, surge como uma fagulha quase arbitrária. Todos esses momentos surgem pela figura de Putin e dos atos de repressão que foram feitos no regime, a discussão sobre a democracia através do fim da URSS é o grande atrativo.
Gorbatchev reconhece Putin como autoritário ditador que é, a figura do atual presidente do país está pairando no filme tal qual o Big brother de 1984 pelas televisões ao fundo. Porém, ao ser indagado se ele trouxe o país à democracia, ele ainda afirma que sim, mesmo reconhecendo o período turbulento. Usando como alento o fato de que grandes mudanças exigem tempo para se tornar concretas, porém a questão que circula a conversa mas nunca é dita fica: Era necessário que houvesse o fim da URSS para uma liberdade que só virá a nascer de forma estável com um tempo maior que a vida dos presentes?
Sendo parte de uma maioria desiludida com as promessas neoliberais do fim da guerra fria, que continua surpreendendo negativamente a cada dia, Gorbatchev encerra o filme com apenas uma certeza: Ele foi amado por sua mulher, e para ele isso importa mais do que tudo. A discussão se ele será visto como um herói na história fica em aberto, como o próprio diretor diz, será apenas com o tempo maior que ambos. Em um desejo (quase) suicida, ele visita o túmulo o qual estará pleno um dia, ao lado da amada. “Gorbachev. Céu” é uma carta de despedida escrita por uma figura que teve de se contentar com a névoa da sua biografia.