O Brasil segue sendo o país aonde mais morrem transsexuais em todo o mundo. Aonde a população LGBTI sofre preconceito diário, ainda que venha a ganhar visibilidade nos últimos anos. Uma nação aonde não há uma legislação que tipifique crimes de ódios contra esses indivíduos. Indianara Siqueira, ativista e militante trans e travesti, luta em prol das vozes marginais serem ouvidas, representadas e ganhem espaço de liderança, não aceitando um lugar de secundarismo da luta, sim protagonismo. O documentário “Indianara” é um relato intimista de uma ativista cansada de ser coadjuvante na própria luta, tendo vozes cis, brancas e heterossexuais, ainda que de esquerda, representando a causa, sem nunca terem sido vítimas de fato desse preconceito e do mero cerceamento a direitos básicos, como o da moradia e do ir e vir.
Há um início quase didático, acompanhando um enterro de uma vítima de violência. Indianara diz não haver nenhuma distinção entre as covas sendo abertas. Não há héteros ou homossexuais, cis ou trans. Há corpos, vítimas ou não da violência. Acompanhamos a partir dali seu cotidiano, levando uma vida entre a militância política, os afazeres domésticos e servindo como “matriarca” da Casa Nem, um centro de acolhimento para os LGBTI’S que são expulso de casa ou não tem condição de ter uma moradia ou sustento. Ali, os corpos são livres, todos podem ser quem verdadeiramente são, inclusive com o direito de se prostituir. Sem moralismos, a prostituição é tratada como uma profissão, merecendo ser legalizada. A liberdade do corpo de cada um é defendida de forma coerente, todos tem direito de fazerem o que bem entenderem, não há tabus para Indianara.
A liberdade gerada pela câmera dos realizadores Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa constroem plena empatia entre público e temática. A personagem título mostra-se espontânea em cada momento, sendo uma figura naturalmente expansiva, a vendo pessoalmente no debate após a sessão, percebe-se que ela é igual tanto sob os holofotes como sem. Não é um longa panfletário, até pelo fato de atirar contra todos os lados, dissecando o status quo da transfobia impregnada na estrutura da sociedade brasileira. O PSOL, um dos principais partidos de esquerda, é denunciado como vítima dessa reprodução, ofuscando a figura de Indianara para os quadros secundários do partido.
O impacto do contexto político ressoa na vida de nossa protagonista: Seja o golpe que destitui a presidente Dilma Rousseff, a ascensão de Michel Temer ao poder, o assassinato da vereadora Marielle Franco, ao qual era um dos quadros que mais dava visibilidade para a causa LGBTI e por fim, a vitória de Jair Bolsonaro à presidência da República. São golpes graves que impõem uma série de retrocessos ao movimento, desiludindo a própria Indianara e a todos as pessoas sãs que lutam por direitos humanos, perceber o quanto as figuras marginalizadas que conseguiram ganhar espaço nos últimos anos, enfrentam ameaças que querem silencia-las, da forma mais brutal possível.
A edição de Quentin Delaroche consegue encontrar a tenuidade entre evidenciar os cruéis baques que tanto o movimento quanto a própria Indianara vem a sofrer desde o golpe de 2016. Ao mesmo tempo, ele celebra a vida, mostrando a resistência e a existência do movimento, mostrando o cotidiano animado, as festas, os sorrisos e as celebrações do próprio movimento. Além disso, a luta em prol das pautas, em manifestações políticas organizadas, seja na rua ou em pequenas atitudes do cotidiano.
“Indianara” serve como um grito de indignação, ecoa ao nos depararmos com tamanhos absurdos que o país está passando, com reações mínimas dos movimentos. Em dado momento, ela diz que há manifestações pontuais, para mostrar algum descontentamento com medidas que são aprovadas, em vez de uma resistência e ocupação generalizada de vias, ruas e prédios. É um proposta de radicalização, pensando na tentativa de revolução, pode parecer romantizado ou até mesmo banal, mas não podemos dizer que não é uma audácia ao qual o país anda precisando. Que os ecos de Indianara Siqueira cheguem a população.
Confira aqui nossa cobertura do 8º Olhar de Cinema.