“A Substância” (“The Substance”, 2024); Direção: Coralie Fargeat; Roteiro: Coralie Fargeat; Elenco: Demi Moore, Margaret Qualley, Dennis Quaid; Duração: 140 minutos; Gênero: Comédia, Suspense, Terror; Produção: Coralie Fargeat, Tim Bevan, Eric Fellner; País: Estados Unidos, Reino Unido; Distribuição: Imagem Filmes; Estreia no Brasil: 19 de Setembro de 2024;
O longa-metragem de estreia de Coralie Fargeat está longe de ser perfeito, afinal “Vingança”, lançado com pouco alarde em 2017, tem seus altos e baixos. Contudo, ela já deixava bem clara a temática de seu cinema e como sabia desenvolvê-la, assim como demonstrava uma personalidade autoral muito forte. Se ali já havia essa pequena amostra do que Fargeat era capaz, em 2024 ela retorna aos cinemas com tudo potencializado, e “A Substância” é um filme que faz justamente isso, potencializa tudo, leva aos extremos, se rega de exageros, mas tudo por motivos que são fiéis ao que a cineasta deseja para atingir seus objetivos. É um daqueles casos em que se tem pleno controle da situação, por mais caótica que ela pareça, e Fargeat ainda brinca com tudo isso, porque não é sua intenção dar uma lição de moral, mas ela tece críticas a diversas coisas e ainda o faz de maneira divertida, tornando tudo uma delícia, por mais desconcertante que algo possa se tornar e tenha certeza que isso acontecerá, porque apesar de ser uma experiência digna do melhor do cinema como entretenimento, há também muito que causará incômodo, mais em alguns espectadores do que outros, seja como forma de empatia ou repulsa pelo reconhecimento do que vemos em cena.
O mais contundente do filme recai sobre Demi Moore e sua personagem, a protagonista de “A Substância” divide muitas semelhanças com sua intérprete, numa justaposição desse descarte de Hollywood para com suas estrelas com o passar dos anos, e Moore tem aqui uma nova chance de brilhar com um protagonismo que é digno de reconhecer seu talento, sem que ela precise recorrer às mesmas saídas da personagem Elisabeth Sparkle na narrativa, o que traz seu outro lado, a Sue de Margaret Qualley (“Tipos de Gentileza”). Ambas dividem o filme entre si e, ao invés de uma disputa (pelo menos das atrizes), elas se complementam através desse discurso de Fargeat sobre a pressão de um ideal de beleza na imagem das mulheres, tanto da cobrança externa como da auto cobrança que é gerada como consequência. “A Substância” constrói isso tanto textualmente, muito através da forma como seus personagens são estruturados -em especial os masculinos-, bem como imageticamente, onde o filme é provocativo e bastante lúdico, subvertendo o male gaze justamente pela maneira como faz uso do mesmo, mas não é somente com essa ferramenta que conseguimos identificar um teor praticamente crítico ao consumo da imagem de corpos femininos, porque Coralie Fargeat imprime isso também de diversas outras maneiras que só alguém que já sofreu com as mesmas coisas seria capaz de realizar.
É como se ela extirpasse ali frustrações que são universais, sentimentos que são pertinentes e causam danos irreparáveis, que levam as pessoas ao extremo, assim, “A Substância” não podia ser nada diferente, estando sempre pronto para dar um passo a mais adentro da loucura, mas sempre de maneira meticulosamente calculada para causar o maior impacto no espectador, parecendo incansável. Até porque, quanto é o bastante para considerar que se tem o suficiente? Nada mais digno disso do quão apoteótico consegue ser o filme de Fargeat, porque encara e entrega essa voracidade com a qual se consomem figuras públicas, num processo de quase desumanização, onde não mais existe ali alguém, mas uma ideia, ou uma substância, e não importa sua qualidade ou integridade, o importante é que você a consuma porque assim lhe disseram para fazê-lo, até que chega a hora de descartá-la. “A Substância” é um grito de rebeldia contra essas regras impostas de maneiras literais ou subjetivas às quais cotidianamente se é submetido, mas Coralie Fargeat tem uma veia autoral tão descolada que embrulha seu filme numa estética e uma estrutura que são pura adrenalina e extremamente contagiantes, quase como uma droga que nos deixa inebriados, para só depois nos tornar cientes de seus reais efeitos.