Vermelho Sol (Rojo, 2018); Direção: Benjamín Naishtat; Roteiro: Benjamín Naishtat; Elenco: Dario Grandinetti, Andrea Frigerio, Alfredo Castro, Laura Grandinetti, Diego Cremonesi, Susana Pampin; Duração: 109 minutos; Gênero: Drama, Suspense; Produção: Emmanuel Chaumet, Federico Eibuszyc, Rachel Daisy Ellis, Barbara Sarasola-Day, Marleen Slot, Ingmar Trost, Dan Wechsler, Jamal Zeinal Zade; País: Argentina, Brasil, França, Holanda, Alemanha; Distribuição: Vitrine Filmes; Estreia no Brasil: 08 de Agosto de 2019 (Sessão Vitrine);
Os cinemas argentino e chileno são os mais abrangentes na questão de abordar as ditaduras civil militar que assolaram a América Latina em meados das décadas de 60 e 70. Grande parte dos cineastas contemporâneos viveram sob esse regime, então temos sempre diferentes óticas sobre o mesmo assunto. O cinema nacional ainda sente certa dificuldade -ou medo- de retratar aquela época, sobretudo por muitos dos arquivos que revelam, de verdade, os atos ocorridos terem permanecido em sigilo por décadas a fio, até serem expostos na Comissão Nacional da Verdade, em 2013. É um exercício de maturidade enxergar como nossos vizinhos conseguem olhar dessa forma para o passado, só por isso já seria instigante assistir uma obra com tal temática. Entretanto, “Vermelho Sol” de Benjamín Naishtat, vai além: faz um filme vastamente cinematográfico e com um roteiro instigante desde os minutos iniciais. Naishtat não fala de ditadura, faz um exercício de dissecação sobre a sociedade argentina na década de 70, ao qual a brasileira está cada vez mais parecida.
O longa abre com a imagem de uma impávida casa, aonde inúmeras pessoas saem apreensivas, carregando objetos. Nada é dito, nos levando a deduzir que aquilo é um saque. A intrigante cena de abertura conquista de imediato o espectador, que é surpreendido por uma briga em um restaurante, decorrente da ocupação de uma mesa. Segue para um conflito corporal, culminando no aparente suicídio de um dos homens. São cerca de vinte minutos, lentos, hipnóticos, aonde não há respiro.
Acontece que um dos homens da disputa é um advogado renomado, chamado Claudio (Darío Grandinetti), pai de família e exemplo no seu círculo social. É um homem incorruptível, sua face estampa lisura. Contudo, seu mundo começa a desmoronar devido a investigação da morte do outro homem, o “hippie”. Entre em cena o detetive Sinclair (Alfredo Castro). Um conflito entre os dois é inevitável, onde um olhar consegue ser mais letal que qualquer munição. O roteiro escrito pelo próprio Naishtat destrincha uma sociedade hipócrita, vivendo apenas de aparências, aonde a moralidade encobre atos nefastos. Uma sociedade deformada, que abraça o fundamentalismo religioso como forma de combate à corrupção. Banaliza a dor humana, os males sociais, apenas em prol do falso bem estar. São os cúmplices perfeitos. Os que se calam perante atrocidades, em prol da manutenção do status quo.
O diretor aponta o dedo diretamente para o espectador, referente a questão da cumplicidade. Os atos do Estado praticados durante as décadas de 60, 70 e 80 foram apoiados por setores da sociedade. Por isso a revisitação histórica dos regimes latino americanos se tratarem de ditaduras civis e militares. Há uma certa resistência em associar o apoio da sociedade civil ao regime que dilacerou vidas e culminou em males econômicos e sociais pelos quais permeiam até hoje no continente. Contudo, é de forma extremamente sútil, além de elegante, que o realizador argentino conclui o óbvio: os governos, sejam democráticos ou ditatoriais, refletem aquela sociedade. Ponto.
Imageticamente rico, decorrente de uma fotografia de encher os olhos, por não ser meramente estilizada, sim bastante relevante narrativamente. O vermelho é a violência, que não é apenas representada no conflito direto. É o vermelho da cumplicidade, da neutralidade e do retumbante silêncio em meio aos absurdos. É a corrupção que vai além dos golpes estelionatários. Trata-se da conivência da sociedade em meio ao caos, da burocracia desenfreada. Do status quo sem fim. “Vermelho Sol” é a cara da América Latina, uma região que nunca se encontrou completamente, sobretudo em ter dificuldade em enxergar como seus atos culminaram nos caminhos mais sombrios possíveis. Como a banalidade da violência nos fez refém do discurso do ódio como forma de combate à criminalidade… Por aí vai. Um filme que dialoga ferozmente com o Brasil pós eleições. E que nos provoca por uma revisitação histórica e fundamentalmente um encontro conosco.
Tudo aparenta estar nas entrelinhas. As veias da América Latina nunca estiveram tão abertas.