A Mostra concedeu o prêmio Humanidade para a cineasta belga, radicada na França, Agnès Varda (89 anos), coincidentemente também será laureada no início do ano que vem com um Oscar honorário pelo conjunto da obra e contribuição ao Cinema. A diretora trabalhou por mais de 60 anos no ramo e tem no seu currículo cerca de 40 filmes, ela é bastante restrita ao nicho da cinefilia, pouco conhecida entre o grande público, por isso é fundamental iniciativas como da Mostra em oferecer uma retrospectiva de suas obras a fim de aproxima-la com novos públicos.
Assistir alguns dos longas-metragens da diretora, incluindo seu mais recente documentário, foi uma experiência bastante engrandecedora. Agnès Varda é uma cineasta que consegue falar de diversos temas de forma mágica, com uma estética imersiva, bastante encantadora e com narrativas metalinguísticas, dialogando consigo mesmo, com seu próprio cinema e com seu público. Uma das precursoras da nouvelle vague, foi também amiga de outros grandes cineastas, como Jean Luc-Godard e François Truffaut. Casada com o famoso diretor de musicais franceses, Jacques Demy, com quem teve dois filhos, que constantemente participam de suas obras – seu filho é ator e sua filha diretora de arte.
A relação dela com Jacques Demy foi tema do documentário O Universo de Jacques Demy (1995), onde a diretora destrincha a alma de seu então finado marido, suas perspectivas sobre Cinema, suas questões estéticas e os demais conflitos em afrontar o mercado francês, não muito familiarizado com o gênero musical. É um documentário extremamente sensível, onde a diretora consegue mostrar uma visão plural de um homem tão peculiar, um amante da música e do desejo de trazer magia ao banal, à tragédia da vida. É um dos documentários mais sensíveis que tive a oportunidade de assistir, deixando uma imensa melancolia, não só pela perda desse cineasta tão grandioso, mas também por ver o fim desse casal tão único.
Outro filme maravilhoso de Varda é As Cento e Uma Noites (1996), uma ode de amor à sétima arte, onde o personagem é, literalmente, o Senhor Cinema (Michel Piccoli), que vai relembrando de sua trajetória pelo desenvolvimento dos filmes, recebendo visitas de amigos que o vão auxiliando nessa jornada de auto-descobrimento e recordação. Dentre as estrelas que vão visitar o personagem, temos Jeanne Moreau, Catherine Deneuve, Robert DeNiro, Anouk Aimée, Marcelo Mastroianni, entre muitos outros. É um filme de grande paixão pela arte, Varda faz uma comédia divertida e nostálgica, sendo aquele tipo de obra na qual desejamos habitar até os últimos dias, seja por sua qualidade ou por sua capacidade em proporcionar tamanha emoção e divertimento.
E finalmente temos Visages, Villages, novo filme da diretora, que realiza junto do fotógrafo francês JR, e um dos documentários favoritos na disputa do Oscar. É uma espécie de road movie, onde os dois vão a diversos vilarejos e tiram fotos gigantes dos comuns habitantes, uma forma de homenagem e também de celebração, reformulando a estética dos lugares por onde passam. Varda aproveita dessa jornada pra relembrar seu passado, na sutileza das lembranças de pequenos encontros, seja uma paisagem que a relembre de um encontro com Jacques Demy ou então um reencontro nada furtivo com o seu amigo Godard.
É um documentário artístico onde duas visões de mundo e geracionais colidem e proporcionam um encantador olhar sobre o poder da Arte, o impacto desta na vida das pessoas comuns, não familiarizadas com ela. Enfim, é um documentário lírico, poético e redentor, não há palavras para descrever o quão grandioso é ver uma senhora de quase 90 anos oferecendo tanto ao seu público, com um otimismo quase que idílico, ao qual precisamos mais do que nunca, a fim de vivermos (ou sobrevivermos) nesse mundo que parece ter banalizado o simples ato de sonhar.