“O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels” (2020); Direção: Tiago Carvalho; Roteiro: Claudio Tammela, Tiago Carvalho; Elenco: Malu Bierrenbach; Duração: 71 minutos; Gênero: Documentário; Produção: Maria Flor Brazil; País: Brasil; Distribuição: –; Estreia no Brasil: –;
É inevitável ver imagens de arquivo de um Brasil “escondido” e não pensar na figura de Humberto Mauro e outros documentaristas do cinema embrionário Brasileiro. A nossa primeira instituição estatal para o audiovisual está atrelada à função educacional do mesmo. Porém, a maioria das peças originadas estão sob lógicas falaciosas que submetem o ensino básico e médio. Uma das mais difundidas é a que esconde o genocídio indígena sob uma ingenuidade caricata, atribuída aos povos originários, em fazer trocas cartunescas de terras e riquezas por objetos de pouco valor, como espelhos.
Desde a década passada, observa-se um movimento para corrigir esses rumos de nossa relação com as fundações do país, e para isso é necessário reavaliar com os povos nativos. Um exemplo disso é a ressignificação das figuras como os bandeirantes, que de bravos peregrinos dispostos a explorar o desconhecido estão mais próximos da realidade cinza e sangrenta que essas jornadas colonizadoras possuíam. E uma das formas mais vívidas de se mudar este imaginário é através do registro vivo, obras como O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels tão poderosas. São as memórias de uma época em que o Estado tinha os povos nativos como pauta.
Até o mais cruel de todos os regimes da nossa história, o regime militar, possuía missões com o intuito de preservar as comunidades indígenas. Essas missões tinham na figura de Noel Nutels seu grande idealizador, e é através de suas imagens e memórias que o filme de Tiago Carvalho se monta de forma através de uma lógica mais sensorial que narrativa. A conjuntura das imagens estão mais interessadas em revelar o fascínio, curiosidade e pavor das sequelas da violência das ações inquisidoras por terras indígenas, seja no Brasil colônia ou no Brasil do século XX.
Ao contrário da larga maioria dos documentários históricos, as inserções das faixas de áudio, de uma aparente entrevista com do oficial indigenista do exército , não são postas como ponto de ilustração para as imagens. Soam como raciocínios iniciados nas imagens e que se concluem na fala, o que faz parecer devaneios de uma pessoa que ainda não processou tudo que vivenciou. A principal beleza do filme está em negar o refúgio unicamente jornalístico, não é apenas a denúncia e informação, Tiago está interessado no caráter imersivo do seu material.
Tudo muda a partir da inserção de trechos do filme “Descobrimento do Brasil“, talvez o feito mais famoso desta fase educativa de nosso cinema. O filme de Humberto Mauro serve como um presságio do verdadeiro intuito de todas as missões do homem colonizador, urbano, integrado ao contrato social do Estado. As imagens urbanas ganham cor enquanto a voz do oficial parece estar em processo de desilusão, questionando a necessidade de demarcar as terras e tornar tal processo “urgente” um ato de violência dos órgãos públicos. A cidade deserta e árida na região do cerrado contrasta com a tribo que se adaptou a viver lá mesmo na precariedade, já que não há fauna além dos poucos répteis e insetos que conseguem viver em uma região de pouca água e flora.
Se os relatos iniciais mostram algum fascínio e ingenuidade, os que encerram o filme mostram desilusão de um homem que viu sua jornada não ser usada como um ponto de conciliação, mas sim de perpetuação da perversão que o chocou em diversos momentos. O grande mérito de O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels talvez esteja na sua fé que a montagem dos arquivos recuperados, um trabalho de pesquisa invejável diga-se (ainda mais no atual contexto de abandono da cinemateca e órgãos de preservação), consiga criar a imersão necessária na luta e desilusão de seu eu lírico, sem a necessidade da verborragia de entrevistas que explicitem o tema.