15a CineOP discutiu educação e democratização de telas, potenciais criativos da TV e perspectivas de preservação num contexto de desafios e incertezas
Diante do cenário de pandemia do Covid-19, situação inédita no mundo moderno que obrigou milhares de pessoas a readaptarem suas vidas e cotidianos, a CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto celebrou 15 edições num contexto de virtualização de suas atividades. Apesar do distanciamento social e de protocolos de segurança, o evento da preservação, história e educação audiovisual brasileiro foi uma das mais calorosas, enriquecedoras e estimulantes ações culturais de 2020 – estimulada pela presença maciça do público, que se dedicou a, durante cinco dias, assistir aos filmes e acompanhar lives de diversos temas, em constante interação com os participantes.
Todos sabemos das dificuldades (técnicas, sociais, pessoais) que se impõem no momento. Ainda assim, a CineOP buscou reconfigurar sua realização e manter as características que a tornam o maior encontro dedicado a refletir as produções brasileiras sob seus eixos mais importantes. Em diversas conversas transmitidas pelas redes sociais da Mostra, professores, educadores, cineastas, pesquisadores e preservadores exaltaram a urgência de se considerar o passado numa relação direta com o presente para, enfim, preparar o futuro. Nada é desconectado, menos ainda numa pandemia de escala global.
Esta é uma das ideias defendidas por Tiago Baptista, diretor de acervo da Cinemateca Portuguesa. Para ele, o presente se faz por escolhas do passado, e essas escolhas é que definem o futuro. Daí ele perceber que espaços como museus e cinematecas – mesmo num século 21 de tantas facilidades tecnológicas a permitir acesso a praticamente qualquer filme do mundo ou fazer visitas virtuais a instituições de memória – seguem como ambientes essenciais. “Museus e acervos têm função de recordar o passado diante do presente. Nada na história é natural ou inevitável: o passado nos ajuda a perceber que somos fruto de opções e de debates já feitos antes”, diz Tiago.
Ao revisitar o passado, a CineOP contou com a irreverente presença dos responsáveis pela TVDO, destaque da Temática Histórica que colocou este ano a televisão no centro das discussões da Mostra, justamente quando o meio de comunicação mais massivo do país completa sete décadas. Fruto de iniciativa singular de quebra de paradigmas, a TVDO realizou programas e intervenções nos anos 1980 que eram o que de mais ousado se fazia no período. “Éramos um grupo sintonizado com tudo que estava acontecendo naquele momento e tínhamos o objetivo de mudar a televisão que não nos satisfazia”, relembra o jornalista Paulo Priolli, um dos integrantes do coletivo formado também por Ney Marcondes, Pedro Vieira, Tadeu Jungle e Walter Silveira.
Já naquela época, o grupo era movido pela ideia de que o audiovisual não deveria ser gerido por categorizações, e sim por sua força de linguagem. “Parece que a gente já antevia que as telas seriam todas uma só (como está sendo agora na pandemia). Tanto é que um dos nossos motes era ‘cinema e/ou TV: tudo conforme a tela que se vê”, frisa Tadeu Jungle.
TELAS E TERRAS
A interconectividade entre telas num cenário de distanciamento forçado e isolamento necessário à sobrevivência literal estimulou o projeto “Nhemongueta Kunhã Mbaraete”, série de videocartas trocadas entre três educadoras cineastas indígenas e uma artista visual que foi exibida e discutida na 15a CineOP. Isoladas em aldeias por vários estados do país, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Michele Kaiowá se corresponderam com Sophia Pinheiro, que deu forma ao material através da montagem em quatro segmentos. “Estamos todas vivenciando um processo muito singular e, através da arte e das vivências simbólicas, podemos subverter o sistema de violência que faz parte da nossa história”, diz Graciela Guarani.
Tal como a videoartista Sophia Pinheiro nomeia de “assentamento de alma e de matéria” a essa reconfiguração das vivências necessária aos novos tempos, a cineasta Cristina Amaral, que participou da seção “Um plano de cinema, um plano de aula”, apontou a educação, a arte e a cultura como o eixo de civilidade humana. “O resto é barbárie”, resume ela. Para a montadora e produtora, a pandemia amplificou o egoísmo e ganância das elites brasileiras, que sempre se sustentaram na opressão e violência de povos africanos e indígenas. Ela vê a produção artística e o aprendizado como possibilidades de romper essas estruturas de poder.
A expressão pelos meios de comunicação também surgiu em debates sobre o uso da televisão como transmissora para além dos métodos tradicionais e dos conglomerados de mídia, cujas construções de narrativa tendem a invisibilizar os núcleos distantes dos grandes centros econômicos. Alguns participantes de debates questionaram a despreocupação da TV brasileira comercial – cujos canais são concessão de Estado – de se colocar diante dos problemas mais urgentes de populações desfavorecidas pelo poder público e apenas se preocupar, há décadas, com seus próprios interesses.
A experiência da TV Maxambomba se destacou na Temática Histórica como exemplo de outras formas de se usar a mídia televisiva como relação e perspectiva a quem de fato o consome. “Entre a segunda metade dos anos 1980 e final dos 90, a Maxambomba circulou com uma kombi e equipamento de som e de exibição por cidades da periferia do Rio de Janeiro”, conta Valter Filé, ex-coordenador da iniciativa. O esforço era reverter o encolhimento do espaço público e o esgarçamento do comum de cada comunidade de periferia que estava sendo oprimida pelas instâncias de poder ainda na ditadura militar – não por acaso, a emissora comunitária surgiu no começo da redemocratização. Se os canais comerciais tinham se consolidado justamente na ditadura, a Maxambomba, com seu enfoque nos bairros e nos moradores, era uma resposta à hegemonia de quem ocupava a escala nacional. “A população da Baixada Fluminense podia debater coletivamente suas questões a partir de outros lugares e perspectivas que escapavam dos conglomerados”.
Mesmo cineastas de trajetória consagrada, como Eduardo Coutinho e João Batista de Andrade, tiveram papel importante na valorização da TV como veículo de invenção e intervenção. Feitos para o “Globo Repórter”, os documentários “Theodorico, o Imperador do Sertão” e “Wilsinho Galileia”, ambos de 1978, colocaram o rosto do povo na telinha, em abordagens ousadas e inusuais que causaram incômodo na direção da emissora. Ambos os trabalhos puderam ser conferidos na programação da CineOP.
Dessas pequenas iniciativas, aparentemente isoladas, os quadros que limitam a televisão vão sendo ocupados e ampliados, novas identidades se formam e a singularidade se mostra presente – é o Brasil de Todas as Telas, como clamou a temática central da CineOP de 2020. O filósofo e escritor Ailton Krenak, destaque da Temática Educação no evento esse ano, diz que, sendo o maior veículo de comunicação de massa do país, a televisão “está envenenada” e que é preciso, de alguma forma, tomá-la – através da valorização de suas possibilidades de linguagem e de atuação. “É preciso terra para todo mundo e tela para todo mundo”, reivindica Krenak. A tela democrática se potencializa com a proliferação de novas tecnologias, considerando que elas sejam ampliadas também em seus usos para além dos grandes núcleos de produção.
Em relação às políticas de salvaguarda audiovisual, instituições do mundo todo – sejam pertencentes ao Estado ou a iniciativas privadas – têm se preocupado com o cenário digital e seus desafios de preservação, mapeamento e difusão. Coordenador de comunicação e informação da Unesco, Adauto Candido Soares participou de um bate-papo na CineOP e contou que a instituição mundial de direitos humanos tem mantido estreita política, junto às nações, de atenção ao patrimônio audiovisual.
“A Unesco tem buscado dar orientação junto aos entes governamentais de quais são os melhores desenhos institucionais para essas questões, porque os desafios são enormes: a digitalização, a migração de formatos e a disseminação de conteúdos”, enumera Adauto. Ele revela que os membros da entidade têm tentado se aproximar de outras áreas do poder público – em especial planejamento, fazenda e administração – para inserir o setor cultural nas políticas já desenvolvidas de preservação de acervo nesses núcleos. “A cultura não deve estar alijada de procedimentos tecnológicos que avançam por outras instâncias em seus trabalhos de manutenção de conteúdo e de materiais internos. Muitas vezes há orçamentos enormes e alta tecnologia em arquivos públicos, enquanto a cultura tem dificuldades financeiras”, aponta. Adauto exalta a preservação audiovisual como um “ativo do país e do Estado, porque é um conteúdo de valor e é necessário pensar os elementos econômicos desse trabalho”.
Como não podia deixar de acontecer, a recente crise da Cinemateca Brasileira, que passa por momento delicado devido ao esvaziamento provocado pelo atual governo federal, foi citada em diversos debates como uma preocupação não só de quem está no Brasil, mas também em outros países, através de vários órgãos e instituições ligadas à preservação. Carlos Augusto Calil, ex-diretor executivo da Cinemateca, demonstra preocupação com a atual situação. “É um momento de grande apreensão, o local está fechado e seus funcionários estão sem acesso porque foram demitidos. Com o calor absurdo que faz atualmente em São Paulo, eu temo pelo acervo, que depende de controles de temperatura muito assegurados”, diz.
Para Débora Butruce, recém-eleita a nova presidente da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual), o sucateamento do funcionalismo na Cinemateca – que não faz concursos e vinha terceirizando as atividades necessárias à sua manutenção – aumenta a dificuldade de estabilidade do órgão diante dos humores de governos, mais ainda quando a cultura não é tratada como política pública.
Os desafios são enormes e parecem infinitos, mas cada passo é igualmente amplo. Se o primeiro semestre de 2020 parecia um complicador para a realização de encontros que ajudassem a avançar tantas camadas de ação, a invenção é o que nos salva diante da crise. A 15a CineOP se reinventou e, se ela aconteceu fisicamente distante de sua casa, a cidade-patrimônio Ouro Preto se manteve a grande inspiração. A energia da história e a importância da memória se mantiveram fixas aos impulsos de um evento inesquecível – e é contra o esquecimento que a CineOp sempre irá se colocar.
CARTA DE OURO PRETO 2020 | PRESERVAÇÃO
Os membros da ABPA – Associação Brasileira de Preservação expressaram a preocupação com a situação do patrimônio audiovisual brasileiro, atualmente em grave risco, em especial o caso da Cinemateca Brasileira e registraram na Carta de Ouro Preto 2020 da Temática Preservação a necessidade de repensar o modelo de gestão via Organização Social para instituições de patrimônio, uma tendência que vem sendo aplicada sem a compreensão do perfil e das necessidades específicas de cada instituição. Além disso, no contexto de celebração dos 70 anos da televisão no Brasil, também destaca a importância da preservação da memória televisiva.
Reafirmaram a CineOP como o principal fórum para a troca de experiências, proposição de políticas e formulação de ações relativas ao campo da preservação audiovisual, a Carta incluiu também reivindicações do setor, dentre as quais destacam-se: a construção de uma política pública para a área tendo como base o Plano Nacional de Preservação Audiovisual; a reavaliação das políticas de terceirização da gestão das instituições de patrimônio audiovisual; o aumento da participação da sociedade civil e da comunidade audiovisual nos colegiados da esfera federal para construção democrática de políticas públicas de preservação audiovisual; a criação de mecanismos para a ampliação da oferta de obras audiovisuais brasileiras nos catálogos de plataformas de streaming, tendo a garantia de inclusão de obras de diversas épocas; e a inclusão do setor de preservação audiovisual nas ações emergenciais destinadas ao setor cultural devido à pandemia de Covid-19.
CARTA DE OURO PRETO 2020 | EDUCAÇÃO
Os participantes da Rede Kino – Rede LatinoAmericana de Educação, Cinema e Audiovisual, reunidos virtualmente na 15ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto expressaram na Carta de Ouro Preto 2020 um convite para que todos, na esfera pública e privada no âmbito municipal, estadual e federal, mas principalmente à toda nação brasileira, para compartilhar as reflexões produzidas durante o Encontro da Educação: XII Fórum da Rede Kino.
Compartilharam também a preocupação humanista inarredável com o valor da vida e de todos os esforços sérios e consequentes para aliviar o contágio e o impacto da doença na ampliação das desigualdades. Da mesma forma, expuseram uma consideração coletiva a respeito da fragilidade da educação, sobretudo no espaço para o ensino das artes e das interações culturais diante desse cenário crítico e, ainda acrescentaram que não compactuam com a visão utilitária e fiscalista que menosprezam seu papel em um contexto de urgência. Reiteramos nossa crença na escola como espaço de encontro e das artes, em especial o cinema, como um tempo escolar humanista e emancipatório.