O texto a seguir contém spoilers. Por Renan Santos

Quando a Marvel lançou sua primeira série em parceria com a Netflix, vimos Demolidor conquistando fãs que ainda não tinham se convencido do Universo criado pela empresa nos cinemas. Ainda que não nos cinemas, também não exatamente na televisão, a série fruto da parceria abriu as portas para um terreno inexplorado pela Marvel em suas produções. Um terreno adulto e sério, sem muito espaço para alívios cômicos. De certa forma representando a frieza do personagem título. Contudo é na segunda série da parceria, Jessica Jones, que a Marvel parece, finalmente, ter adentrado na vida adulta, atingindo um novo patamar em suas produções.

Jessica Jones seja talvez o projeto mais arriscado da Marvel até o momento. Homem-Formiga (Ant-Man) poderia carregar esse feito. Entretanto, mesmo que os dois não fossem tão badalados, um deles carrega “homem” no título, portanto, um personagem masculino. Em Hollywood é um tiro mais certeiro, na mente dos executivos. Até porque é o que mais atraí o público aos cinemas, afinal estamos falando aqui de cultura de massa. Por isso Jessica Jones é o movimento mais arriscado. Além de ser pouco conhecida, a personagem central é uma mulher. Não é a primeira protagonista do Universo Audiovisual da Marvel, a agente Carter teve sua série antes, porém, é Jessica Jones quem trata a mulher com total seriedade.

O quesito que dita esta diferença é a censura, enquanto uma (Agent Carter) está num canal de televisão aberta em horário nobre, a outra está na Netflix (precisa dizer mais?). Dessa maneira, o que temos em Jessica Jones é algo semelhante ao feito em Demolidor, com uma narrativa com um tom mais sombrio e sério, consequentemente adulto. Jessica Jones, no entanto, traz algo que em Demolidor não foi tão explorado. Há uma sexualidade presente, corpos não são mais somente armas inumanas de destruição, e sim objetos de desejo e que possuem seus próprios desejos. São corpos que precisam se satisfazer.

É a primeira vez, portanto, que vejo no Universo da Marvel nas telas (seja lá do que for) relações interpessoais serem realmente interessantes. Nada de a mocinha do herói, o romance obrigatório. Os personagens, mesmo os secundários e coadjuvantes, precisam se relacionar, precisam interagir, serem amados e amarem, desejar e serem desejados. A consequência disso, no todo, é o melhor desenvolvimento de personagens que a Marvel teve até hoje. Mesmo aqueles que pouco tinham a ver com a trama acabaram se revelando interessantes pela forma como suas relações com os outros personagens realmente possuíam um peso.


O passo mais importante em Jessica Jones vem, todavia, numa relação homo afetiva. O triângulo amoroso entre as personagens de Carrie-Anne Moss, Susie Abromeit e Robin Weigert acabou se mostrando um dos elementos mais interessantes da série. Havia ali uma delicadeza e sensibilidade que tornaram a relação em algo gostoso de se acompanhar. Nesse caso específico sem pender para um melodrama chato de se acompanhar, mas com personagens que se mostraram funcionais, passíveis de uma narrativa que contempla aspectos humanos e dramáticos verossímeis e convincentes, capazes de serem desenvolvidos gradativamente.

O mesmo serviu para a própria Jessica Jones (Krysten Ritter) com Luke Cage (Mike Colter). Acompanhar a relação dos dois sendo construída, além da maneira como ela foi construída, mostrou outra vez como Jessica Jones (a série) sabe lidar muito bem com relações. A química dos dois atores em cena, aliás, foi um dos principais elementos contribuintes para a qualidade total da relação. Até nessa relação a Jessica Jones de Krysten Ritter mostrou ser independente, deixando claro que não é nenhuma mocinha em perigo e sabe cuidar de si própria sem precisar de ninguém, ou melhor, de nenhum homem.


O ápice do discurso feminista, discurso necessário, diga-se de passagem, vem nos confrontos contra o grande vilão da primeira temporada e da vida de Jessica Jones. O Killgrave de David Tennant merece elogios pelo que o ator faz, dando uma faceta realmente assustadora a seu personagem. Mas são as próprias atitudes da narrativa que dão contornos capazes de tornar o personagem na entidade que é. A obsessão cega de Killgrave é confrontada pela realidade dos fatos do que ele realmente cometeu contra Jessica Jones e as outras mulheres que controlou.

Killgrave é, na realidade, uma síntese do que há de pior no ser humano. Não somente para construir um vilão, mas para mostrar que a negligência é a pior das decisões. Jessica Jones, além de ser o projeto mais arriscado e inovador da Marvel, traz consigo também o melhor vilão de seu Universo. Sim, ele é o melhor vilão da Marvel até o momento, mas justamente por ser tratado de forma adulta, séria, contundente, não como acontece nos filmes do estúdio, onde não se sente o peso das atitudes “malignas” dos vilões. Em Jessica Jones o maligno é real, ao menos para os personagens, que sofrem consequências e traumas e realmente são atingidos por tudo aquilo que está acontecendo ao seu redor.

Mesmo Luke Cage, com sua pele intransponível, pode ser quebrado pela existência maligna de Killgrave. Foi ele, o vilão, o responsável por me fazer assistir episódio atrás de episódio. Até porque era ele quem tirava, ou salvava, a série de se tornar um melodrama enfadonho. A estrutura de Jessica Jones quase pendia para um procedural padrão, mas logo voltava à realidade da narrativa contínua quando os traumas de Jessica Jones retornavam para confrontá-la na forma de Killgrave. Ou representados nas coisas que ele fazia para se reaproximar dela. Todos transtornos de seres humanos quebrados.

Todavia, duas coisas que não me desceram por completo na série foram a Trish Walker de Rachel Taylor e o agente Simpson de Will Traval. Este último talvez o mais longe do tom realista dado à série. A relação dos dois foi o que mais me incomodou em Jessica Jones, não consegui acreditar nesta relação. Simpson também me pareceu um personagem exagerado demais, muitas vezes propositadamente, mesmo que tenha rendido alguns bons e um surpreendente momento. Ainda assim Jessica Jones entregou algo pelo qual muito esperei da Marvel, quando a personagem título tomou a atitude de dar um fim definitivo a Killgrave. Confrontando a realidade e suas consequências, é assim que Jessica Jones se torna, na minha opinião, a melhor produção do Universo Cinematográfico (ou Audiovisual) da Marvel.

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