“First Cow” 2019; Direção: Kelly Reichardt; Roteiro: Jonathan Raymond & Kelly Reichardt; Elenco: John Magaro, Orion Lee, Toby Jones, Ewen Bremner, Scott Shepherd, Gary Farmer, Lily Gladstone; Duração: 121 minutos; Gênero: Drama; Produção: Neil Kopp, Vincent Savino, Anish Savjani; País: Estados Unidos; Distribuição: –; Estreia no Brasil: –;
Kelly Reichardt não é uma diretora que não apresenta interesse algum por cidades que simbolizam de forma mais evidente o American Way, como Los Angeles ou Nova Iorque, até mesmo as regiões mais caricatas, como o Texas e Boston. A cineasta norte-americana sempre buscou em seus filmes retratar a realidade de áreas que permeiam a maioria do território do país, aquelas que não preenchem por completo ideal algum, nem o ideal de subúrbio interiorano mas que também tiveram a sua urbanização interrompida de alguma forma. Wendy & Lucy (2008) e Antiga Alegria (2006) buscam nesses espaços de natureza ainda preservados uma forma de introspecção, sempre abusando da evidenciação do aspecto fragmentado dessas paisagens, onde florestas são interrompidas por prédios abandonados. Seja nos sintomas de uma já aparente crise econômica prestes a explodir, como a de 2008, ou na de comportamento da geração millenium, a diretora sempre busca essa contemplação minimalista. Em First Cow não seria diferente.
Ao abrir o filme com um momento de contemporaneidade, com a sua já típica economia de planos, ela busca estabelecer os temas que nortearão o filme. A menina que encontra, ao acaso, dois esqueletos enterrados sob uma floresta enquanto um barco cargueiro passa. Quando o corte para o passado daqueles um dia vivos ocorre, mal se percebe a sua existência. A partir do momento em que o protagonista é apresentado enquanto cozinheiro daquele acampamento improvisado, há uma sensação de unidade que se faz associar com a situação de muitos no atual panorama geopolítico. Sem casas ou empregos em suas antigas terras, na busca por melhores oportunidades, por mais precárias que sejam as condições de trabalho, dispostos a aceitar qualquer coisa para sobreviver. Por mais que haja a eventual quebra dessa linha tênue entre cronologias, a partir do momento em que o vilarejo surge e os personagens falam abertamente sobre a caça ao ouro, o elo entre passado e presente está concretizado.
Porém, por optar em desenvolver seu cinema fora da perspectiva contemporânea, indo mais especificamente a um período embrionário dos Estados Unidos, a diretora acaba por encontrar novos temas. Abordando a Febre do Ouro, um evento da fundação americana que não possui os tons homerianos da Marcha para o Oeste, a minimalista encaixa sua abordagem para tal tom. Ao contrário de outros grandes diretores que abordavam esses eventos capitais da fundação americana, como John Ford, não há uma busca por ícones que representem valores quase metafísicos. Não há um John Wayne para Reichardt chamar de seu, um personagem que carregue a história e o fardo violento da mesma. Sendo assim, ela espalha tais temas para todo o seu microcosmo de personagens, o que acaba por mudar a sua resposta para as fundações do país.
Pois, para a diretora, o mito fundador dos Estados Unidos é o constante movimento migratório em si. Seja a fuga da Inglaterra, que vai se motivar pelo conflito religioso e concretizar a sua maior epopeia no Destino Manifesto no oeste, a ideologia norte americana não se permite à estabilidade. Quando os dois personagens acham algo que pode fixá-los na região, eles sempre almejam estar em algum outro lugar com um novo negócio que possa trazer a mesma manutenção. Tal qual a carga do navio ou a vaca da figura de autoridade maior, esses homens estão condenados a serem transportados como mão de obra barata, tratados como matéria-prima. Por isso que a partir do momento em que eles quebram a hierarquia social, roubando o leite, não há suspeita alguma mesmo sendo evidente o crime. Aos olhos dos acima, não é possível que o padeiro possa roubar sua matéria prima, já que ele é visto como propriedade igualmente.
Nessa crueldade das relações entre classes, a diretora sempre busca filmar as de caráter passivo-agressivo entre os iguais com certa ternura. A conexão entre o imigrante inglês e chinês é sempre tratada como irmandade, mesmo que haja uma certa estrutura de poder ali entre aquele que trabalha e o que oferece moradia, ela está sempre subserviente a de empatia. Ao final, quando tendo a oportunidade de fugir com todos os ganhos, ele opta pelo afeto, em um dos planos mais bonitos de todo o filme. Até as interações violentas, como os homens do acampamento se ameaçando por estarem estressados e com fome, são filmadas com um distanciamento que retira a hostilidade e dá um ar atrapalhado para as mesmas. São homens cujo a miséria e desespero transformam sua percepção de realidade em algo vesgo, ignorando os reais problemas daquele panorama. E essa miopia é a base de toda a exploração.
A forma como essas figuras mais claras dessa relação de poder, como os militares, são completamente coadjuvantes. Retratados com certo descaso até, onde a única característica evidente é a soberba. Para esses “grandes” homens já existem os livros de história, o longa-metragem observa e busca escavar a perspectiva corriqueira do momento. Sem grandes enfoques aos eventos capitais, eles apenas tornam-se motivos para a inquietude dos protagonistas. Existe uma dignidade maior às figuras indígenas do que as colonizadoras, respeitando seu dialeto e privando o público de entender o mesmo através de legendas. É nesses momentos que se vê como a diretora amadureceu sua estética naturalista, visto que ela não abdica de uma composição dos planos que estabeleçam tais relações sem uma desvirtuação da proposta. As posições de cada personagem estabelecem as hierarquias sem a necessidade de um evidente ensaio delas. Acaba que a opção por uma proporção de tela reduzida facilita o embate desse declarado conflito de classes seja algo mais palpável pela proximidade que os corpos se encontram.
No clímax, tanto o protagonista quanto a vaca leiteira encontram-se cercados pelos seres dominantes, evidenciando a tragédia: Haverá novas vacas por ali assim como imigrantes, nenhum dos dois é digno de proteção maior por parte do sistema. A decomposição de ambos não terá enterro, nota ou até mesmo alguém para ver. Os cavalos irão seguir trazendo novas cabeças de gado, assim como os navios trazem novos imigrantes. Essa história só será desenterrada pelo acaso, como o de uma menina passando por ali enquanto um barco cargueiro traz mais matéria prima.