O Diabo de Cada Dia (The Devil All The Time, 2020); Direção: Antonio Campos; Roteiro: Antonio Campos; Elenco: Tom Holland, Bill Skarsgård, Riley Keough, Jason Clarke, Sebastian Stan, Haley Bennett, Eliza Scanlen, Mia Wasikowska e Robert Pattinson; Duração: 138 minutos; Gênero: Suspense, Drama; Produção: Jake Gyllenghal, Riva Marker, Randall Poster, Max Born; País: Estados Unidos; Distribuição: Netflix; Estreia no Brasil: 11 de Setembro de 2020.

(Imagem: Reprodução/Netflix)

“There’s a lot of no good sons of bitches out there”

(“Tem muitos filhos da puta do mal por aí”)

É com essa frase, repetida algumas vezes no filme pelos personagens de Bill Skarsgård (“IT – Capítulo 2“) e Tom Holland (“Homem-Aranha: Longe de Casa“), que podemos compreender o cerne da discussão trazida por O diabo de cada dia, filme lançado pela Netflix em setembro de 2020. O mundo como um lugar mal, rodeado de sujeira e indiferença por todos os lados, sem fornecer qualquer possibilidade de redenção aos seus personagens. A humanidade que apodrece tudo em que encosta. Os reflexos da violência cotidiana em uma escala histórico-cultural. No fim, o diabo parece marcar sua onipresença não por meios sobrenaturais, mas através das ações do próprio homem que o condena.

Dirigido por Antonio Campos, o longa foi lançado na plataforma de streaming em setembro de 2020 e, além de Holland e Skarsgård, conta no elenco com Robert Pattinson, Mia WasikowskaSebastian Stan. Ele narra diferentes histórias dentro de uma cidade rural do Sul dos Estados Unidos permeada por crenças religiosas, com foco no personagem Arvin (Holland), um garoto buscando por alguma escapatória em meio ao universo caótico.

(Imagem: Reprodução/Netflix)

O mal parece estar enraizado no modo de viver daquela sociedade. Um casal de serial killers, padres sem caráter, fanáticos religiosos, policiais corruptos, soldados sempre prontos para explodir em violência – todos os signos que simbolizam a cultura norte-americana parecem aqui ser subvertidos de sua aparente sacralidade e são transformados em exemplos podres da decadência moral de um país. Talvez, além disto, da decadência do próprio homem, expulso do paraíso e condenado a viver em pecado entre seus semelhantes.

Ambientado na metade do século XX, entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, o diretor traça um paralelo entre os pequenos gestos de poder presentes naquele microcosmo e a violência representada pelo país para o resto do mundo, assim como a natureza amoral do ser humano – o mesmo homem que procura uma vida pacífica e  amor na cidade onde nasceu também é aquele capaz de matar seu semelhante e não sentir um pingo de remorso, e por esse caminho a história se constrói. No filme, nada e ninguém são salvos do instinto de sobrevivência que parece sempre guinar em direção à destruição do outro. E o que a narrativa examina é justamente a relação entre os personagens a partir desse olhar, e em que medida alguém pode crescer em um ambiente assim infértil.

(Imagem: Reprodução/Netflix)

Em meio a isso, retrata o papel fundamental da religião no estilo de vida da cidade pequena e nas crenças por um futuro melhor, enquanto mostra que é justamente esta tradição que permitiu ao mal se enraizar naquele solo. De religiosos que jogam aranhas em seus rostos ao padre cafajeste interpretado de maneira feroz por Robert Pattinson, o espaço espiritual da Igreja é transfigurado em mais um símbolo do absurdo de se viver naquele ambiente, em que tudo está fadado à podridão. O ascetismo não é uma possibilidade diante da solidão do homem em relação ao mundo, à indiferença da natureza.

Talvez o ponto mais positivo do longa esteja na maneira como ele assume essa filosofia (niilista, por que não?) desde o princípio e segue até o final a levando a cabo por meio da estrutura narrativa e de sua estética sóbria, crua. Em comparação a tantos longas que retratam os anos 50 em cidades rurais americanas, aqui o céu está sempre nublado, as ruas não parecem dar a lugar nenhum, praticamente inexiste conforto nos espaços internos, e a trilha sonora sempre indica que algo ruim está prestes a acontecer. Mesmo as cenas mais violentas são filmadas com uma crueza muito impactante. A fotografia reforça esta sensação com predomínio de cores neutras e bastante discrição em seus movimentos, sempre com atenção à terra, solo do qual nenhum personagem parece ser capaz de escapar.

(Imagem: Reprodução/Netflix)

Em retrospecto, esta abordagem realista pode ser encarada como sinal de que o longa leva suas intenções para além de sua capacidade dramática, em oposição a filmes como “A casa que Jack construiu“, de Lars Von Trier, que funcionam justamente por adotar um estilo mais escrachado e excessivo com muitos dos mesmos temas de O diabo de cada dia. No entanto, é interessante a forma com que o filme de Campos articula esta estética a partir da construção narrativa proposta e compensa alguns de seus excessos.

Especialmente, a não-linearidade do filme parece ser uma escolha bastante arbitrária, a princípio. No início, cenas de passado e presente e com diferentes focos dramáticos se entrecortam sem razão evidente, mirando no inusitado e atingindo algo que beira o confuso. Com o tempo, diferentes arcos apresentados são costurados e orquestrados em uma confluência cada vez mais tensa, com ecos de filmes como “Pulp Fiction“, que se utilizam do não-linear e das histórias entrecortadas para mostrar encontros e desencontros entre personagens sujeitos ao acaso do universo. Aquilo que no início parecia ter pouco propósito se revela interessante na forma como a narrativa é amarrada.

(Imagem: Reprodução/Netflix)

Entretanto, isso demora quase 1h30 do longa para se estabelecer e, até este ponto, a atenção dispersa, em especial nas cenas cujos focos desviam do arco dramático de Holland. O roteiro insiste em dar aos personagens coadjuvantes um tempo de tela considerável das 2h20 de projeção, mas não parece justificar este desvio de foco e tampouco oferece material interessante a eles, especialmente para o personagem de Sebastian Stan e o arco com sua irmã (Riley Keough) e o marido dela (Jason Clarke).

Problemas similares estão presentes na narração, que desde o princípio se mostra um tanto desnecessária e talvez seja o sinal mais forte de que o filme não compreende as próprias limitações. Com um sotaque e linguajar tipicamente sulistas, o narrador (interpretado por Donald Ray Pollock, autor do livro que dá origem ao filme) serve seu propósito como velho contador de histórias do universo rural americano, mas é quase completamente dispensável, atuando apenas como fonte de humor e ironia para este universo de outra maneira sombrio – inclusive, um exercício interessante seria o de retirar a narração e verificar se o filme ainda faz sentido sem ela. A proposta talvez tenha seu valor, mas demonstra que o aquilo que talvez funcionasse no meio literário não apresenta os mesmos resultados nas telas, e mesmo a escolha artística mais arriscada do filme não é suficiente para dar-lhe um caráter de originalidade.

Isto ocorre porque, a parte da coragem de um filme de estúdio tratar sobre temas assim densos e pessimistas, o formato não traz nada de verdadeiramente revolucionário quanto parece imaginar, com temas similares presentes em obras de muitos diretores consagrados, de Bergman a Paul Schrader e Darren Aronosfky. Por mais que esta visão seja bem trabalhada no longa da Netflix, talvez funcionasse melhor caso não procurasse adicionar detalhes efêmeros, como a narração e o abuso da não-linearidade, para obter algum tipo de destaque. Atingir a simplicidade talvez seja o maior desafio de um filme e, ao tentar tampar buracos para se apresentar como algo novo, O diabo de cada dia deixa escapar algumas de suas fragilidades.

(Imagem: Reprodução/Netflix)

Fragilidades que, no entanto, não comprometem o filme por completo. Ainda é possível identificar que este projeto de buscar o mal estruturado no funcionamento da sociedade estadunidense atinge seus objetivos de maneira coerente, em parte devido ao esforço dos atores (em especial Skarsgård e Pattinson) e de uma direção com consciência dos temas abordados e de como trata-los. Os excessos pesam e apenas evidenciam um estilo que ainda tem a amadurecer, mas parecem abrir caminho para um possível autor surgindo nas entrelinhas, com coisas interessantes – e nem sempre confortáveis – a dizer. Aguardemos.

“O DIABO DE CADA DIA” – TRAILER OFICIAL

 

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