O escritor inglês John Le Carré participou do serviço secreto inglês em meio a guerra fria. Após se retirar do serviço, virou um celebrado escritos de livros de espionagem. O seu maior diferencial foi mostrar a espionagem de forma natural sem o tom supervalorizado do 007 de Ian Fleming. É importante ressaltar a característica de Le Carré, pois em cada adaptação de sua obra, veremos como o trabalho de espião se assemelha com o de um burocrata, sem vilões exóticos, armas superpoderosas ou mulheres deslumbrantes. É tensão em cima da normalidade, num mundo literalmente preto-e-branco.
Em “O Espião que Veio do Frio” não poderia ser diferente, onde a essência é justamente o pessimismo dos personagens em relação ao mundo em plena bipolaridade. No cenário da guerra fria, atestamos o quão corrosivo foram os eventos, mesmo não havendo um conflito direto entre nações, porém que conseguiu construir uma sociedade desconfiada, sem escrúpulos e conflituosa.
É nesse palco que conhecemos Alec Leamas (Richard Burton), um espião enviado à Alemanha Oriental com a missão de ser um agente duplo. Porém, logo se começa a desconfiar de sua verdadeira lealdade, que o faz entrar em um conflito interno em relação ao ofício e seus ideais pessoais. O pessimismo toma conta de Leamas, o universo que está inserido está prestes a desmoronar.
A narrativa é lenta, o que pode afastar uma parcela do público que espera mais ação, porém para os mais atentos o envolvimento é imediato. A forma de construção dos personagens e suas relações entre si é brilhante, com alguns diálogos muito bem construídos e que atestam o quão conflituoso foi a realidade vivida. Em meio ao conflito de Leamas, suas interações com os diversos expoente atestam que não importa o que a pessoa pareça por principio, ela não presta. Todos desconfiam um dos outros e agem por interesse próprio, a fim de se tornar vitoriosa sua causa. A forma sutil que esse fato é apresentado é o mais interessante da argumentação, por mostrar o quão degradante podia ser a guerra fria.
A fotografia preto-e-branco ressalta ainda mais a bipolaridade vivida pelo mundo na época, além do próprio personagem principal, que é pautado como um mero burocrata, mas aos poucos se sente inconformado com os caminhos tomados. O ápice do conflito na realidade está em nós mesmos, ou seja, no retrato de pessoas comuns que devem decidir se mantém seu ofício, mesmo que ultrapasse seus valores morais ou defende-los, enfrentando as consequências.
A direção de Martin Ritt é corajosa e precisa, com sua “câmera na mão”, vai sufocando o protagonista o máximo, aumentando cada vez mais o mal estar. Burton e o diretor conseguiram trabalhar em perfeita harmonia e vão construindo muito bem o universo em destaque. A ambientação é precisa e consegue aumentar a imersão e o envolvimento por parte do público, conseguindo ser angustiante em determinados momentos, principalmente pelos embates indiretos, onde um confronto de diálogos consegue valer por um sanguinário duelo de forças distintas.
Richard Burton encontra-se em plenitude, conseguindo expressar todos os conflitos e angustias do personagem, ainda conseguindo conquistar a simpatia e solidariedade por parte do público. Sua nomeação ao Oscar não só é merecida, como sua derrota soa injusta. Vale destacar também o excelente time de coadjuvantes que completam o protagonista confrontando-o, é o que faz o excelente Oskar Werner como liderança comunista e a também simpatizante de esquerda a sensível e bela Claire Bloom, que faz o par romântico de Burton e é uma das principais culpadas pelo início dos conflitos em torno do agente.
O Espião Que Veio do Frio ,assim , consegue ser uma obra ofegante e inteligente, onde é exaltado todo cinismo e falta de escrúpulos de organizações e membros da sociedade, evidenciando, portanto, o quão sórdido o ser humano consegue ser, haja guerra ou não. Um filme conseguir retratar isto, em pleno ápice da guerra fria em 65, representa não só coragem, mas também um tapa na cara de todos os envolvidos.
~CURIOSIDADES~
- Trata-se da primeira adaptação de um filme do escritor John Le Carré, sendo a única inteiramente em preto-e-branco
- Claire Bloom conseguiu ser escalada graças a seu amigo Richard Burton, sendo bem mais velha que a personagem original
- Oskar Werner conquistou o Globo de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante por seu papel no filme
- Richard Burton e Martin Ritt conquistaram o BAFTA, o prêmio máximo do cinema britânico, de ator e diretor, respectivamente.
- O longa foi indicado a dois Oscar’s: Ator (Richard Burton) e direção de arte.
- O ator Burt Lancaster foi a escolha inicial para viver o protagonista Alec Leamas, porém não pode faze-lo devido a sua agenda
- Foi o primeiro filme de Le Carré a ser indicado a pelo menos 1 Oscar.
- Considerado um dos 10 melhores filmes de 65 pelo National Board of Review.
- Le Carré se inspirou em sua vivência pessoal como espião, tendo trabalhado em Berlim na época da construção do Muro. O filme se passa exatamente um ano após sua construção.
- É a primeira vez que George Smiley, personagem mais relevante e presente em toda obra de Le Carré, aparece no cinema com modesta participação.