“Urubus” (2021); Direção: Cláudio Borrelli; Roteiro: Cláudio Borrelli, Mercedes Gameiro, Cripta Djan, Vera Egito; Elenco: Gustavo Garcez, Bella Camero, Bruno Santaella, Julio Martins, Robert Orlando; Duração: 113 minutos; Gênero: Drama; Produção: Julia Tavares, Claudio Borrelli; País: Brasil; Distribuição: –; Estreia no Brasil: –;
A arte vive, desde os tempos de mecenato, uma estreita ligação com o capital, logo atrelado diretamente aos interesses burgueses. É ingênuo acreditar que houve algum momento na arte moderna em que o fazer criativo não esteve sob alguma estrutura de poder vigente, até o construtivismo soviético está atrelado diretamente ao Estado. Chegando até mesmo a causar problemas com diretores como Tarkovski em algum momento da história. Por isso que o ato de pichar, ou pixo, parece tão distante da arte à primeira impressão. É um ato cujo a essência está na sua ilegalidade e na transgressão à ideia de propriedade privada. Isso fica notório em um dos eventos capitais de “Urubus“, filme de Claudio Borrelli e produzido por Fernando Meirelles.
Como um grito para marcar presença, os pichadores invadem o evento de domínio das elites, a Bienal do livro de São Paulo, em uma parte cujo grande atrativo é a obra de Oscar Niemeyer. O ato de “rabiscar” uma parte sem nada com apenas a obra do homem que desenhou a capital do país é um ato de forte poder simbólico, mesmo que não seja planejado pelos autores do mesmo. Essa rebeldia sem causa explícita, como fica nítido em diversos diálogos, parece ter tomado a direção do filme. Parece que a única coisa que o norteia está nos fatos, mais específico em alguns eventos capitais que estiveram sob cobertura midiática.
Ao mesmo tempo que “Urubus” parece perdido em tentar elaborar algo acima dos fatos, são tantas escolhas feitas, que aquilo que se mantém constante durante o filme parece ser um fiapo de tese. Por exemplo, a cenografia sempre faz evidenciar a evidente desigualdade social entre aqueles dois mundos. Não existe o momento ‘observe a pobreza’, busca a comoção a um nível que o torna fetichista. A pobreza existe e essa dicotomia faz parte do cotidiano destas pessoas, junto à suas consequências. O metrô que os leva ao centro é limpo e os que devolve ao seu local serem díspares não é alvo de um plano detalhe que torne aquilo o foco da atenção.
Assim como para os personagens, a raiva juvenil está justificada mesmo que não explícita em palavras. Porém, nesse jogo de classes subentendido, o roteiro legitima constantemente uma visão paternalista entre as elites e as minorias com relação a arte, mesmo que implicitamente. Assim como o Rock, o rap, grafite, entre tantas outras culturas de raízes negras e periféricas, só se torna legítimo através da figura branca como padrinho. Quem desempenha essa função está na figura da namorada do protagonista. Ela ensina a eles a ler sobre teoria da arte, onde a ordem do caos pelo caos torna-se verbalizada; Ela registra os feitos da turma; Ela vira a ponte deles com o museu alemão que se interessa por dar prestígio; Ela conscientiza o protagonista sobre os perigos de um aborto ilegal. A figura da personagem é quase maternal.
Enquanto isso ocorre, principalmente a partir da metade final, o filme constantemente busca evidenciar o lado falho dos integrantes. Um se envolve com o tráfico; outro é um pai prematuro em situação de miséria; o protagonista é um potencial pai ausente; o único personagem que apresenta alguma pureza juvenil, além de ser o com menos tempo de tela, morre no final. A semântica fica de descrédito, ainda mais que um dos momentos de revolta do protagonista, totalmente justificada, com a personagem burguesa sendo filmada como parte de um efeito rebote para o uso de drogas. Esse tom se repete ao final pela piada com o fato do pixo ter sido reprimido na bienal seguinte. É como se o movimento não tivesse legitimidade própria, mas sim ganho a partir do momento em que o primeiro mundo olha com interesse para o mesmo.
“Urubus” funciona muito bem nesse caos descomprometido: no linguajar quase incompreensível das quebradas paulistas; no tremor da câmera a quase todo momento; na estabilidade dos planos que maior evidenciam o perigo que os jovens-adultos se põe pelo movimento; pelo caos de caminhos com os quais flerta, chegando a um momento bem “The Warriors”. Problema é que, talvez pelo apego aos fatos e verossimilhança externa, o filme não embarca de cabeça no caos e cria sua arte através dessa sensação desnorteante auto justificada. Um filme que flerta com tantas coisas novas mas que se reduz à uma estrutura de biografia comum, onde esta bagunça não é bem vinda.