Deslembro (2018); Direção: Flavia Castro; Roteiro: Flavia Castro; Elenco: Jeanne Boudier, Hugo Abranches, Arthur Raynaud, Sara Antunes, Eliane Giardini, Julian Marras, Jesuita Barbosa, Antonio Carrara; Duração: 96 minutos; Gênero: ; Produção: Walter Salles, Gisela B. Camara, Flavia Castro; País: Brasil; Distribuição: Imovision; Estreia no Brasil: 20 de Junho de 2019;
Em “Deslembro” a realizadora Flavia Castro dá nova roupagem sobre temáticas e assuntos espinhosos. Focando num olhar inteiramente juvenil, seu novo filme é um relato sobre a dificuldade em (re) construir raízes e sentimentos para com uma sociedade, cultura e nação tão peculiar quanto a brasileira. E fica ainda mais complicado se deparando com a ditadura civil e militar que assolou o país por nefastos 21 anos, gerando série de violações de direitos civis e humanos, exílios e torturas das mais variadas possíveis. Como “perdoar” um país que o expulsou? Como ser parte de um povo que, em partes, aclamou a ascensão do totalitarismo no país – e hoje em dia sequer reconhece a existência da exceção. São perguntas não inteiramente respondidas, mas a tentativa de construir essa narrativa a partir desses questionamentos tornam “Deslembro” um deleite cinematográfico.
A jovem Joana (Jeanne Boudier) viveu grande parte de sua vida na França, adaptada completamente ao modo de vida francês, vivendo com sua família composta pelos irmãos, padastro e mãe (Sara Antunes). Quando a matriarca decide regressar ao Brasil, após anos de exílio, a jovem começa a relutar sobre a ideia, afinal a ditadura militar desapareceu com seu pai e expulsou sua mãe. O embate de conflitos entre mãe, filha e padrasto – um argentino também exilado pela ditadura do seu país – não é meramente de ideias, mas também linguístico, mesclando diálogos em português, espanhol e francês, servindo de uma mostra do dilema de ser apátrida.
A ida da família ao Brasil, além de expôr conflitos, implica nos personagens em superarem desafios: a urgência do amadurecer de Joana frente ao novo país; lidar com os “esqueletos” do armário da ditadura, religar com o país e lidar com a situação social e política ainda instável. A suposta Lei de Anistia permitia os exilados retornarem ao Brasil ao mesmo tempo que perdoava os agentes brasileiros dos seus crimes contra os direitos humanos. Os torturadores não pagaram por seus crimes nem em 79 e nem em 2019, impunes pela conveniência. Tais feridas são latentes no cotidiano dessa família, sobretudo por não saber o real paradeiro do pai de Joana, sendo uma figura fantasmagórica para a adolescente (vivido por Jesuíta Barbosa, mas nunca visível em plano).
A belíssima fotografia de Heloísa Passos consegue expor a cada quadro os anseios da jovem Joana, em uma paisagem lírica do Rio de Janeiro, mostrando o quanto a menina destoa da paisagem, variando entre a admiração e a apatia do cenário. A trilha sonora diegética é outro recurso a expôr como os gostos da jovem destoam da “brasilidade”. Em dado momento, Joana e seu affair falam sobre música, ele resolve tocar samba e exalta a raiz da cultura brasileira, ao qual a jovem, por mais que tente rejeitar, reverencia.
A presença da atriz veterana Eliane Giardini engrandece o longa, com uma dinâmica belíssima entre a novata Joana e a veterana atriz, servindo não só de contraponto entre gerações, como também uma ligação entre as memórias dolorosas entre a avó, descrente no país, e a jovem inexperiente que tenta achar um motivo para justificar a crença nessa nação. O poema de Fernando Pessoa dá titulo ao longa – e é recitado em momento emocionante. Nas palavras do poeta: “Deslembro incertamente. Meu passado. Não sei quem o viveu. Se eu mesmo que fui, está confusamente deslembrado. E logo em mim, enclausurado flui.” Serve como uma síntese tanto do filme quanto do Brasil pós-64, que apesar dos anos de ditadura,opressão e cerceamento de liberdades, deslembra o que viveu e comete os mesmos erros do passado. Uma lástima, porém, filmes como o de Castro nos lembram a importância do cinema a fim da preservação da memória nacional.