Eu, Empresa (2021); Direção: Leon Sampaio, Marcus Curvelo; Roteiro: Amanda Devulsky, Camila Gregório, Leon Sampaio, Marcus Curvelo; Elenco: Marcus Curvelo, Carlos Baumgarten, Aristides De Sousa (Juninho Vende-Se), Mariana Rios, Carol Alves, Thiago Almasy, Ritah Oliveira, Felipe Pedrosa, Rachel Sauder, Gaba Reznik; Duração: 82 minutos; Gênero: Drama; Produção: Transes Filmes, Anacoluto, Filmes Amarelos; País: Brasil; Distribuição: –; Estreia no Brasil: –;

O aplicativo Uber é um marco na lógica trabalhista. O momento em que trabalhadores se viram capazes de trabalhar sem grandes amarras além da necessidade de saber dirigir. Tudo isso aliado à uma demanda por um sistema de transporte particular menos abusivo que o mercado de Táxi. A lógica vendida era perfeita: Você trabalha quando quer, onde você estiver. Essa flexibilidade no trabalho era ilusória em essência, tornando os motoristas cada vez mais submissos à uma série de algoritmos que tornavam jornadas de mais de 12 horas algo comum. Todo o ecossistema digital passou a replicar o modelo de trabalho, onde a empresa te coage como empregado mas sem precisar responder às legislações empregatícias. Tudo isso aliado à uma lógica de meritocracia cada vez mais ilusória, seguido de uma crise econômica grotesca, o que acontece com o indivíduo? Essa pergunta é um resumo da trama de “Eu, Empresa“.

A trama sobre o trabalhador informal que busca sucesso na internet por falta de opção de emprego boa é universal, ainda mais em um mundo ainda pandêmico. O filme busca constantemente evidenciar a fragilidade da ilusão neoliberal, pois o protagonista segue toda a cartilha do sucesso vendida por tal ideologia. Ele busca se arriscar em áreas que ele não tem domínio, muda o seu mindset com uma coach, tenta achar exemplos de sucesso que ele possa se inspirar. E é o seu constante fracasso em todas as tentativas que torna a crítica severa. A questão não é que ele está errando e deveria repensar seu trabalho, mas sim como ele não deveria ter que se pôr em tais condições para sobreviver. Produção de conteúdo para a internet se tornou a solução de todos para o desemprego por uma evidente falha de políticas públicas que consigam contornar a crise econômica.

Isso ainda se agrava nas atuais condições de trabalho do meio digital, onde cada produtor de conteúdo precisa ser uma entidade onipresente que saiba manusear todas as plataformas viáveis, saber quais tendências devem ser seguidas, criar análises de dados e estatísticas do público. Produção de conteúdo se tornou regra para qualquer profissional, onde além de exercer a profissão, há a obrigação do mercado de que você seja uma agência publicitária de um homem só. Tudo isso para ganhar uma eventual repercussão que só vai render capital com anos de investimento de tempo. Enquanto isso, as relações trabalhistas funcionam cada vez mais na ilegalidade, como o momento em que após vender sua voz para um aplicativo, a empresa se recusa a pagar por uma quebra de contrato sem evidência (mesmo que ela tenha ocorrido).

Leon Sampaio e Marcus Curvelo levam essa trama em um tom tragicômico, como em um filme dos irmãos Coen quase, onde o humor está mais na completa dissociação da realidade do que por alguma piada em si. Mas ao contrário dos norte-americanos, os dois tentam constantemente buscar o público para a realidade tangente que o personagem tanto tenta ignorar mesmo que a documente de alguma forma. A discussão entre os entregadores de delivery é um momento que, por mais leve que seja, ainda dá um peso bizarro perceber o quão sucateado são tais condições. Sem alternativas, não há como negá-las em busca de um mínimo de dignidade. Nesses momentos, a câmera se posiciona de forma mais documental também, se aproxima dos atores sociais como se estivéssemos na roda de conversa. Assim, nos põe na evidente realidade de que o personagem se pune sobre um fracasso que a verdadeira causa é maior que ele.

Ao terminar, o personagem entra em pleno colapso mental, falando de forma raivosa na praia e no carro. E é recompensado pelo sucesso nas mídias digitais se tornando viral, é a prova maior de um fascínio quase sublime da internet pela vergonha alheia, um voyeurismo entre integrantes da mesma classe à própria desgraça. Nisso ele se perde por completo, se tornando mais um perfil tão comum nas redes sociais com episódios marcados que formam a jornada do herói digital, com direito à cancelamento. Por mais bem intencionado seja dar tal final, como uma forma de enfatizar o processo desumanizador do meio, ainda há uma brecha grande para que se encaixe em uma lógica liberal de mérito. Como se o personagem fosse recompensado por aquilo, mesmo que o propósito dele ainda seja tão vazio quanto na sua fala diante de diversos que lutam como ele por tais espaços. O processo de perda da individualidade acaba sendo minado pela necessidade de um último deboche.

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Estudante de cinema, Roteirista e Produtor de curtas independentes. Crítico de cinema vulgar nas horas vagas.

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