Açucena (2021); Direção: Isaac Donato; Roteiro: Isaac Donato e Marília Cunha; Elenco: –; Duração: 71 minutos; Gênero: Documentário; Produção: Movie Ações Audiovisuais; País: Brasil; Distribuição: –; Estreia no Brasil: –;

Um monólogo que expõe de forma indireta o conflito de seu filme seguido por um plano de um quarto de bonecas sobre uma luz vermelha. A sequência inicial de “Açucena“, documentário dirigido pelo estreante Isaac Donato, define bem a unidade do filme em si. Um contraste de linguagens bem intencionadas mas que acabam por sabotar uma semântica maior.

Todo o ritual do aniversário de Açucena é retratado como um ritual local, restrito apenas àqueles que estejam devotos à embarcar na fantasia de uma mulher de 67 anos em fazer uma eterna festa de 7 anos. Existe uma negação dramática evidente, visto que todos os atores sociais postos em tela sempre agem com naturalidade e na fuga de eventuais conflitos de interesses. 

Eles estão sempre postos em conversas corriqueiras, em angulações que aproximam e uma edição que se omite de grandes intervenções. Nesse aspecto, o filme entra em um diálogo bastante curioso com o cinema de Abbas Kiarostami. A linguagem de poucas intervenções e foco no aspecto mundano e corriqueiro é um dos elos mais fortes do filme. Mas o que faz os filmes do iraniano parecerem documentários, mesmo sendo ficções, aqui geram um efeito oposto.

Açucena” parece um filme de ficção em alguns momentos, não porque haja algum elemento que quebre a noção de verossimilhança externa, mas sim a forma como a câmera se porta em diversos momentos. Seja a opção por uma distância quase unânime de todos os envolvidos; ou pela escolha por escantear os mesmos para que os espaços tomem protagonismo; até mesmo em posicionar os elementos em cena para que haja um aspecto rebuscado com o uso de objetos que refletem, como espelhos à portas metálicas.

Entre tantas decisões feitas, uma das que mais entram numa dicotomia bem dúbia entre erro e acerto é a de não revelar ou mostrar diretamente Açucena. Ao mesmo tempo que transforma o aniversário dela em um ritual quase folclórico, metafísico, uma espécie de oração à inocência, também desumaniza a pessoa em si. Ainda mais contando com o elemento sobrenatural que alguns planos das bonecas sobre a luz vermelha trazem. A existência da pessoa Açucena torna-se dúbia em determinado momento. Pois toda a montagem do filme nos leva a crer que tal aniversário está tão impregnado no ciclo anual daquelas pessoas que irá continuar existindo após a morte dela.

Porque em determinado ponto, uma das suas presenças formadas por associação, a conversa com bonecas, revela-se não ser dela de fato. Outro momento que poderia ser dela, a compra da boneca na loja, também é negado. É como se o aniversário de Açucena fosse um mero ritual coletivo apenas, facilitando ainda mais uma eventual desumanização de uma pessoa com uma deficiência neurológica. Não é só de Açucena que a lente opta por se distanciar em momentos capitais.

A festa de aniversário, o momento em que todo o filme constrói, é filmado através de uma distância e austeridade quase perversa. Ainda mais considerando a opção por filmar através de uma janela com grades e encenar boa parte desse momento. Por mais que a intenção seja abordar um aspecto condenatório, como se todos ali presentes estivessem presos àquilo tal qual a aniversariante a sua idade, toda a construção do resto do filme não fornecer alguma ternura apenas faz esse plano ter uma semântica cínica.

A opção por priorizar espaços, sempre pondo os atores sociais com seus corpos cortados pelos limites do quadro ou objetos, também entra nessa boa intenção com uma consequência meio maliciosa. Esses personagens são tão típicos de qualquer subúrbio no país, fazendo com que Isaac aposte na força deles no imaginário popular para que seus corpos sejam preenchidos além do espaço do quadro. A tentativa se mostra falha, pois, por mais relacionável e próxima que sejam as conversas captadas, elas não possuem força ou até mesmo dinâmica para que não seja uma experiência além de estéril.

Açucena” é um filme que escolhe abordagens, sempre buscando algo fora do óbvio para um tema tão delicado. É de se exaltar como em momento algum esse filme ameace cair em uma espécie de voyeurismo da desgraça alheia ou em algum didatismo jornalístico. Porém, ao sempre optar pela distância e pouca intervenção de forma dogmática, suas cenas perdem força, tornando o filme em si uma experiência esquecível. O eterno aniversário de sete anos não merecia tamanha frieza adulta.

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Estudante de cinema, Roteirista e Produtor de curtas independentes. Crítico de cinema vulgar nas horas vagas.

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