O primeiro longa da dupla baiana Ary Rosa e Glenda Nicácio, “Café com Canela“, foi ovacionado por onde passou. Trata-se de uma obra que discute sobre luto, depressão, ancestralidade e, principalmente, afeto. Por se tratar de dois cineastas advindos do recôncavo baiano, saindo do eixo das capitais, chamou atenção o quanto suas visões destoavam das demais. Não por acaso, muita é a curiosidade e expectativa para seu novo longa-metragem, “Ilha“, sobretudo após este ser laureado no Festival de Brasília com aclamações e prêmios.

Diferente de “Café com Canela“, o novo projeto da dupla é mais autoral e pretensioso. Continua o debate sobre ancestralidade, a busca da nossa identidade. Acrescenta o valor da própria narrativa cinematográfica, numa proposta de metalinguagem. Um suposto bandido, Emerson (Renan Motta) sequestra Henrique (Aldri Anunciação), um célebre cineasta baiano, que ultimamente aderiu aos longas convencionais. O motivo? Emerson quer que o diretor faça uma cinebiografia sobre a sua vida. Paralelamente, Thacle, seu amigo, filma a interação entre o encarcerado e o seu carcereiro, sitiados na tal ilha titulando o filme.

Em dado momento, há uma síndrome de Estocolmo entre os dois, começando com uma identificação mútua para vingar em atração e afeto. Uma proposta audaciosa, sobretudo por mexer com o espectador na confusão da imagem do real e imaginário. Até mesmo o olhar voyerista de Thacle, o rapaz por trás da câmera, é esquecido em momento, nos iludindo que estamos vendo um filme convencional. Longe disso, a pretensão em enganar seu público em busca de quebrar a subjetividade é a essência de “Ilha“. Talvez por isso incomode, pela banalidade de se assumir como uma metalinguagem, em dado momento, inclusive, um dos personagens afronta com a frase “engulam minha subjetividade”. Doa a quem doer, a seco. Assim mesmo. Sem afetos dessa vez.

Particularmente, fiquei interessado em saber sobre Thacle, sua personificação como representante do público soa um desperdício de personagem e narratividade. Ele desempenha papel primordial, porém sem voz, impotente, passivo, como expressão do público portanto soa muito incômoda. Há impressão que Rosa e Nicário querem que o público engula seu filme, doa a quem doer. Sem espaço para respiro, inflexão.

A proposta de exceder o recurso de câmera da mão, ainda que converse inteiramente com a proposta, incomoda em diversas vezes, por oprimir e confundir seu espectador. A direção consegue usar de seus elementos na proposta de inúmeros debates sobre questões do valor do cinema entorno de figuras marginalizadas, seu ponto alto é a construção de seus personagens e uma direção sublime de seus atores, ora encenando o próprio filme e ora fazendo o filme ao qual assistimos. A dupla Renan Motta e Aldri Anunciação conseguem nos conquistar com uma grande química, projetando em nós seus sentimentos, seja indignação ou felicidade. Aldri, em dado momento, performa a música “Clube da Esquina 2”, num dos momentos mais lindos do filme.

Audacioso, Ilha se intitula como um filme “feito para quem escolheu cinema, mas que o cinema não os escolheu”. Apesar de um desfecho um tanto brega, destoando com o resto da narrativa, sua proposta em abordar a marginalização entorno de seus personagens é extremamente singela. Demostrando que o cinema está presente no cotidiano de todos e que, ironicamente, sim, as vidas mais banais podem virar um filme. Há uma ode ao movimento do Cinema Marginal, de Sganzerla à Bressane, nessa proposta, rompendo enfim com a narrativa convencional, demostrando como personagens por mais que andem, não saem do lugar. Não por acaso a narrativa ser numa ilha, os marginais são ilhados, presos no regime de exclusão. Nesse sistema chamado cinema.

Gostando ou não, o segundo longa de Ary Rosa e Glenda Nicário tira seu espectador do lugar, seja por gerar incômodo, indignação, raiva ou apresso, plenitude, gozo. Uma dupla de cineastas interessante, que parecem ter muito a oferecer e agregar na Cena Cinematográfica Nacional. “Ilha” me parece aquém de seu potencial total, porém não dá para dizer que faltou uma veia autoral, aonde o afeto e a negritude são fio condutor primordial. A se conferir aonde mais nos levarão.

Confira aqui nossa cobertura do 8º Olhar de Cinema.

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