American Crime
(ABC, 2016)
Direção: John Ridley, Clement Virgo, Gregg Araki, Julie Hébert, Rachel Morrison, Jessica Yu, Kimberly Peirce, James Kent, Nicole Kassell
Roteiro: John Ridley, Ernie Pandish, Sonay Hoffman, Kirk A. Moore, Davy Perez, Stacy A. Littlejohn, Keith Huff, Julie Hébert, Diana Son
Elenco: Connor Jessup, Lily Taylor, Joey Pollari, Felicity Huffman, Timothy Hutton, Regina King, Elvis Nolasco, Trevor Jackson, André Benjamin, Angelique Rivera, Hope Davis, Faran Tahir, André L. Benjamin, Emily Bergl, Christopher Stanley, Brent Anderson, Stephanie Sigman, Richard Cabral, Lynn Blackburn, Sky Azure Van Vliet, Michael Seitz, Ty Doran
Número de Episódios: 10 episódios
Data de Exibição: 06 de Janeiro de a 09 de Março de 2016 (nos Estados Unidos)
O texto contém spoilers.
American Crime em sua primeira temporada figurou facilmente entre as melhores séries de 2015. Com toda série sempre há aquela dúvida se vindouras temporadas conseguirão se manter no mesmo nível de sua antecessora ou, então, até mesmo supera-la. Muitas vezes isso não acontece, porque o conteúdo se desgasta, falta criatividade e a série começa a definhar. Quando se trata de uma antologia, como é o caso de American Crime, isso é mais complicado ainda, por se ter de estabelecer toda uma nova história, exigindo ainda mais criatividade. Era uma grande dúvida se a série manteria o altíssimo nível de qualidade da primeira temporada. American Crime não só o manteve, como também gerou, mais uma vez, um dos discursos mais belos e contundentes sobre a sociedade contemporânea.
Na segunda temporada a história que acompanhamos é sobre os estudantes de um colégio particular norte-americano, cuja nome é Leyland. O time de basquete, grande orgulho do colégio, é alvo de uma denúncia de estupro. A vítima, entretanto, não é uma mulher, mas um homem. É a mãe de Taylor Blayne (Connor Jessup) quem faz a denúncia, somente após descobrir do ocorrido vendo fotos de seu filho em condições deploráveis durante uma festa. Assim como Anne Blaine (Lili Taylor), as mães e pais dos garotos do colégio também passam a se envolver nesse crime, que gera uma repercussão com consequências em toda a sociedade da qual eles fazem parte.
Nessa segunda temporada, American Crime vem com um crime ainda mais dúbio. Afinal, nós sabemos que algo aconteceu durante a festa, mas o que, exatamente, é algo que pode permanecer em dúvida mesmo após o encerramento dessa segunda temporada. Diferente do primeiro ano da série, na qual as consequências do crime eram “palpáveis”. Só que enquanto muitos podem criticar esse posicionamento vago, esse questionamento sobre a veracidade dos fatos relatados, assim como as famílias dos jogadores do time de basquete fazem, é onde surge o brilhantismo da conotação do título da série. Porque o crime americano ao qual se refere é muito maior, e pode não ser somente um.
Por isso é tão gracioso ver as extensões que John Ridley -roteirista vencedor do Oscar por 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave) e criador da série- junto com sua equipe de roteiristas dão à história em American Crime. O fato da trama se estender para pessoas na sociedade que pouco, ou nada, tem a ver com o crime que dá o pontapé inicial na temporada, como é o caso da personagem de Elvis Nolasco, demonstra como opiniões alheias também influenciam diretamente nesse crime maior que se gera. Porque há esse panorama de que como a sociedade, no todo, vê esses acontecimentos.
Portanto, quando alguém pergunta “mas garotos são estuprados?”, começamos a entender o quanto não somente os responsáveis pelo ato são culpados, como também a sociedade no todo, por não abarcar a conscientização da violência nesse nível de possibilidade. O questionamento da personagem de Regina King vem como uma negação, e não é à toa, é simplesmente por algo estar tão encravado no imaginário coletivo que pensar diferente, por si só, já requer uma quebra de paradigmas guardados a sete chaves. Essa relutância em aceitar o acontecimento resulta, portanto, no medo da vítima em confessar o que lhe aconteceu.
Aí a atuação de Connor Jessup se mostra memorável, porque sua introspecção e relutância em falar sobre sua situação é uma resposta à atitude daqueles que fazem parte de sua vida. Aqui, também, começa a funcionar a beleza da linguagem cinematográfica, tão importante em American Crime. Preste atenção nas sessões que Taylor tem com seus conselheiros, a câmera faz questão de mostrar não o rosto, mas as mãos dos conselheiros, os gestos semelhantes dos quais elas são vítimas. Retraídas, contidas, sem saber muito bem como se portarem. Porque não se está preparado para esse tipo de coisa. Não sabemos lidar com isso, porque nunca se quis lidar com isso. Só que John Ridley sabe que é importante colocar em foco toda a ramificação do que está em voga.
Por esse mesmo motivo é admirável o trabalho com jovens nessa segunda temporada. Aliás, essa temporada de American Crime fez com jovens um dos melhores trabalhos que vi na forma como os retrata. Joey Pollari, que interpreta Eric, faz um trabalho tão delicado, tão sensível. Capaz de causar desgosto, porque ele é tão vítima quanto criminoso. Essa dualidade que American Crime impõe não torna possível uma completa redenção, porém, ao mesmo tempo o coloca numa posição de sofrimento que é tão bem transportada para o público. Gera-se uma aflição, desencadeia-se uma empatia com a personagem quando sua própria família não sabe lidar com sua orientação sexual.
No episódio oito é onde temos as maiores consequências disso. Não da personagem, todavia do não saber lidar com uma situação. O episódio que traz depoimentos reais sobre trágicos acontecimentos em colégios, é complementada pela realidade da manutenção errônea de uma situação. Manutenção e situação são, também, duas palavras erradas para se expressar isso. O episódio complementa com a importância que se deve à todas as pessoas. Coisa para a qual a sociedade não dá a mínima: o indivíduo. O que revela uma profunda falta de reflexão sobre o estado da sociedade hoje. Retirar direitos básicos de minorias, privar cotas da sociedade de determinadas conquistas, não são atos ignorantes. Não há debate entre se aceitar ou não, há que se entender necessidades, providenciar o suporte suficiente, e eficiente, para que o indivíduo, seja ele quem for, não se desloque da sociedade.
Entretanto, inexplicavelmente, essa ideia parece algo difícil de ser aceito. É aí também que American Crime demonstra como consegue ser tão eficaz. Porque na negligência, não intencional, da personagem de Elvis Nolasco para com o assédio de uma de suas estudantes, e a consequente suspensão de um estudante de etnia diferente do diretor, acontece de maneira subconsciente. É tão natural, que mesmo que não se queira fazer mal, só se percebe as consequências posteriormente, quando forçado a refletir sobre as escolhas que foram feitas. Contudo, não se pode ser assim e precisamos combater essa situação, por isso American Crime tem um importante papel social: conscientizar.
Se na crítica da primeira temporada denotei como American Crime se utilizava de fortes artifícios visuais para estabelecer sua polêmica narrativa, nessa segunda temporada isso se mantém intocado. Entretanto, é no plano sequência que encerra o sétimo episódio que percebemos algo. O que o episódio escrito e dirigido por John Ridley faz é mostrar como American Crime não precisa se tornar sensacionalista. Mesmo antes do plano sequência, quando subtraí o som do tiro dado por Taylor, já faz isso. Porém, é no plano sequência que a essência de American Crime tem seu ápice. Ele não está ali por acaso, e a função que estabelece condiz com o estado das personagens naquele momento. O plano se encerra, no entanto, buscando um pequeno detalhe: a forma como a mãe se atém a seu filho. É nesse momento que sintetiza-se a grandeza de American Crime. Porque naquele aperto, naquele símbolo de afeição, está o que American Crime faz de melhor. É ali que aceita e compreende as pessoas como elas são. É onde American Crime se torna a personagem de Lili Taylor e nós, o público, nos tornamos a personagem de Connor Jessup e, assim, tudo o que os dois representam.
1 Comment
Pingback: Crítica | Rectify | 4ª Temporada - Cine Eterno - Cinema Sem Fronteiras