“Priscilla” (2023); Direção: Sofia Coppola; Roteiro: Sofia Coppola; Elenco: Cailee Spaeny, Jacob Elordi, Dagmara Domińczyk, Ari Cohen, Tim Post; Duração: 113 minutos; Gênero: Biografia, Drama; Produção: Sofia Coppola, Youree Henley, Lorenzo Mieli; País: Estados Unidos; Distribuição: O2 Play; Estreia no Brasil: 04 de Janeiro de 2024;
Sofia Coppola abre “Priscilla” com uma sequência que retrata não só sua marca registrada como cineasta, mas o mito que constituiu Priscilla durante vários dos anos que passou com Elvis Presley. Imagens que remetem a um senso de nostalgia, bem como a uma imagética que transcende o tempo porque se tornaram símbolos de uma figura que virou uma espécie de mito por ter vivido, a princípio, o que era uma vida dos sonhos: ser a mulher de Elvis Presley. Como se a Priscilla de Cailee Spaeny (“Vice”, “Círculo de Fogo: A Revolta”) caminhasse nas nuvens, somos conduzidos a como ela chegou àquele momento, enquanto Coppola desconstrói toda uma vida para justificar o que nos diz quando encerra seu filme revelando que tipo de memórias são aquelas. Se ano passado Hollywood se embebedou no glamour do “Rei do Rock” no filme de Baz Luhrmann, o filme de Coppola é quase que uma antítese a esse ideal. É uma coincidência a proximidade de ambos e inevitável a comparação de alguns aspectos, ainda que um filme não queira ser o opositor, ou uma resposta, ao outro. É só um acaso que nos dá a oportunidade de compreender melhor como mitos se estabelecem e se desfazem através de visões e suas convicções.
Há uma sofisticação na forma com a qual Sofia Coppola consegue recriar esse período histórico dos personagens e simultaneamente o manter descolado, numa capacidade de ser “pop” sem ser vulgar, mas sabendo como pontuar os momentos exatos em que se é necessário ser exagerado. E essas sutilezas influenciam no desenvolvimento da protagonista porque é perceptível sua humanidade através de uma singularização que cria essa empatia baseada em camadas que caracterizam uma figura complexa, que deixa de ser apenas a “namorada/esposa de Elvis Presley” para se tornar algo além, algo próprio. Talvez não houvesse outra pessoa mais adequada a contar essa história do que Sofia Coppola, porque sua abordagem é de uma eficácia extrema ao saber como equilibrar os diferentes sentimentos que “Priscilla” contém. Porque é complicado mesclar as sensações de um romance “proibido” com seu lado platônico, assim como as facetas de canastrão e ingenuidade que as duas partes conflitam na história, de maneira que não torne tudo ali condescendente. Há todo um misticismo na relação ao mesmo tempo que causa um estranhamento, e resulta em cenas como a de Priscilla reencontrando seus pais após a primeira viagem a Graceland, mansão de Elvis em Memphis. A risada ali garantida vem acompanhada de uma ótima sacada, é esse feeling que torna o filme de Coppola especial.
A maneira na qual ela retrata Cailee Spaeny no papel da protagonista nunca a sexualiza ou a objetifica, e seu Elvis, por sua vez, faz ambos com a protagonista, mas com diferentes tratamentos. Sua objetificação, principalmente como apenas a “mulher/esposa” é óbvia e recorrente no filme, mas a maneira como Coppola destaca as tantas maneiras nas quais ele a objetificou é, por vezes, até desconcertante. Parece até fácil retratar um Elvis machista, agressivo e possessivo através da figura de Jacob Elordi, mas Coppola consegue arrancar uma atuação convincente da jovem estrela para além de estereótipos, ao mesmo tempo em que estabelece muito bem esse arquétipo da persona que o cantor sempre quis manter para as câmeras e o público, e que o fez se perder e distanciar-se de quem tanto dizia amar. Os efeitos da aura desse mito e as cicatrizes que a realidade foi capaz de gerar são traduzidos numa atuação soberba de Cailee Spaeny, que consegue reproduzir cada fase da relação entre os dois da maneira mais sensível e tocante possível, com expressões que contém sutilezas marcantes à arroubos em momentos explosivos inevitáveis. Spaeny, acima de tudo, compreende e faz compreender o amadurecimento da personagem e pessoa que, através do olhar de Coppola, é algo independente, não é Elvis ou o tratamento dele à sua esposa que moldam a personagem, mas seu processo de crescimento desde da ingenuidade do romance dos sonhos aos derradeiros momentos que culminam na decisão de que Priscilla é ela própria, precisa de sua própria história. E agora, mais do que nunca, a tem com o devido reconhecimento!