“Ela Disse” (“She Said”, 2022); Direção: Maria Schrader; Roteiro: Rebecca Lenkiewicz; Elenco: Carey Mulligan, Zoe Kazan, Patricia Clarkson, Andre Braugher, Jennifer Ehle, Samantha Morton, Ashley Judd; Duração: 129 minutos; Gênero: Biografia, Drama; Produção: Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Lexi Barta; País: Estados Unidos; Distribuição: Universal Pictures; Estreia no Brasil: 08 de Dezembro de 2022;
Já é de conhecimento público e muito difundido os crimes cometidos por Harvey Weinstein e os relatos de seu aprisionamento, que dificilmente serão revertidos em vida, enquanto ele cumpre pena por um estado, de Nova York, e aguarda conclusão do julgamento de outro estado e, inclusive, outro país. Não havia qualquer limite para os abusos que um dos produtores mais renomados de Hollywood cometeu ao longo de décadas, cruzando continentes e fazendo vítimas a bel prazer. Fatos que hoje conhecemos, com os quais ficamos chocados quando dos primeiros relatos e, subsequentemente, aliviados, até certo ponto, com a repercussão que o caso devidamente recebeu. Como, então, um filme pode recontar isso de uma maneira que seja justa ao mesmo tempo que traga algum frescor para uma história que, no fim das contas, é tão extremamente dolorosa? A resposta é “Ela Disse”, filme comandado por Maria Schrader e baseado no livro e na reportagem das jornalistas que deram o pontapé inicial na publicação das denúncias que encerrariam o reinado de Weinstein em Hollywood. O filme dramatiza e reconta como Megan Twohey (Carey Mulligan) e Jodi Kantor (Zoe Kazan) conduziram a investigação que traria à tona os relatos das vítimas de Weinstein.
Outro desafio para “Ela Disse” é a inevitável comparação com o vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2016, “Spotlight: Segredos Revelados”. É verdade que os dois filmes têm, sim, suas similaridades, afinal tratam de uma mesma prática do jornalismo, que se torna cada vez mais escassa com o passar dos anos. Além das praticamente duas décadas de diferença entre a publicação das duas histórias, “Ela Disse” também engloba muito o protagonismo feminino na condução dessas histórias, e como a vida das próprias repórteres são influenciadas por suas investigações. Há um aspecto pessoal muito forte em desenvolvimento aqui, que se torna intrínseco à narrativa. Schrader denota uma importância a esse detalhe para torna-lo uma característica na construção de seu filme, pois é como essas mulheres se encaixam e habitam dentro da sociedade, onde por mais que em seu trabalho seja esse constante enfrentamento com fatos e relatos devastadores, elas ainda fazem parte de um cotidiano em que levam uma vida o mais próximo possível da normalidade. Isso é afetado quando elas colocam seu nome na linha, em risco, numa cidade que Schrader retrata demonstrando a indiferença não só de uma cidade, mas de uma sociedade que parece renegar o que profissionais como Kantor e Twohey fazem.
É importante também a maneira como o roteiro de Rebecca Lenkiewicz consegue encontrar um ponto de equilíbrio para dar a essas personagens um arco narrativo dramático, que com certeza toma liberdades de tornar ficcionais alguns eventos, mas ao mesmo tempo não se torna sensacionalista, não se aproveita das dores das vítimas, muito menos as torna piegas, pelo contrário. Schrader parece estar em sinestesia quando tira as palavras de Lenkiewicz do papel, pois o que encontramos é uma sensibilidade tal cuja sobriedade com a qual é retratada transforma nossa relação com o filme numa de pura empatia, e sintoniza nossos sentimentos à condução narrativa. “Ela Disse” é capaz de nos replicar uma miríade de sensações em participações do elenco que são corriqueiras, cenas que duram alguns poucos minutos, mas onde tudo é tão bem orquestrado que nos vemos completamente envolvidos. Portanto, somos conduzidas a uma montanha-russa de sensações; inquietação, incômodo, enojamento, medo, sentimentos que imperavam a vida dessas mulheres, e que Schrader reproduz de maneira claustrofóbica sem nunca precisar recorrer a uma reconstrução dos eventos. A simples sugestão é efetiva o suficiente, um terror que, depois de apresentado, só é contraposto pela ancoragem no que o elenco é capaz de entregar em cena.
Das pequenas participações, uma das que mais tocam é a de Samantha Morton, curta e efetiva, direta! Ao contrário da personagem que Jennifer Ehle interpreta, cuja processo da destruição da inocência é devastador, uma batida emocional diferente, que ecoa e ganha mais força também a partir dos relatos de outras vítimas. Ver Ashley Judd em cena, então, é um momento tocante sem sequer precisar de qualquer influência da cineasta que comanda o filme. Judd tem aqui seu momento especial de reconhecimento, e que coragem a dela. Algo que por sua vez ecoa no filme em si. Carey Mulligan e Zoe Kazan são também um reflexo disso, conforme o andamento do filme, e as duas estão em pé de igualdade no que entregam ao espectador e no que fazem ao interpretarem essas pessoas. As duas concebem de forma perfeita toda a toada do filme, e transmitem em atuações brilhantes o que precisa ser traduzido de tudo que está acontecendo ali, com essas personagens, com essas vítimas, com essas histórias. O choro derradeiro de Kazan parece se fazer real, a resiliência que Mulligan representa rende um olhar que parece perfurar a tela. Se percebe o quão especial é esse projeto e o quanto ele se faz especial por seus próprios e diversos méritos.