Crepúsculo dos Deuses trata-se de um daqueles longas singulares que apenas é mais valorizado conforme o passar do tempo. Desde a ofegante cena de abertura, o espectador prepara-se para embarcar em uma das obras mais marcantes e geniais que o cinema presenciou, inspirando gerações e estabelecendo pilares para a sétima arte.

O excelente diretor e roteirista Billy Wilder faz um dos seus projetos mais corajosos e incisivos que visa homenagear o Cinema, ao mesmo tempo que ataca fortemente Hollywood e a industria cinematográfica. Esta última que ousa ditar tendências e padrões, excluindo os que ficam a margem do “progresso”, ou seja, a decadência de um estilo em detrimento da ascensão de outro que não necessariamente significa ser superior ao anterior, evidenciando uma frieza por trás dos bastidores.

Na trama, Joe Gillis (William Holden) é um roteirista frustado que foge de cobradores de dívidas e dificilmente consegue emplacar algum de seus textos. Certo dia, ele para em frente a uma luxuosa mansão no Sunset Boulevard, pertencente a ninguém menos que a consagrada atriz do cinema mudo Norman Desmond (Gloria Swanson), que acabou decaindo com o cinema falado, vivendo solitariamente junto ao seu fiel mordomo Max (Erin Von Stroheim).

Quando a atriz descobre o roteirista, instantaneamente ela o contrata a fim de aperfeiçoar um roteiro de autoria própria pra lá de duvidoso, para enfim apresentar ao diretor Cecil DeMille, acreditando cegamente que irá retornar ao seu inebriante sucesso.  Após longa convivência, Joe se acostuma e acomoda com as mordomias, mesmo percebendo o regime de semi-escravidão que passa a viver, ao mesmo tempo que Norma começa a se apaixonar pelo roteirista. O que acontece de fato é que mesmo ele querendo se libertar desse cenário, cada vez mais ficava acorrentado e envolvido, preso por grilhões acima dos limites físicos. O mal estar torna-se então um componente inevitável, a derrocada da bizarra relação dos dois é lentamente consumada.

O longa é um palco de inúmeras referências ao cinema, a indústria e seus expoentes, mostrando o lado menos glamouroso e mais voraz de Hollywood. É um honesto banho de água fria aos idealistas da indústria do cinema, mostrando-se cada vez mais nociva e comercial, um retrato corajoso feito por Billy em meio, justamente, de uma época de ouro no cinema, no qual as produções exalavam qualidade e os estúdios cresciam intensamente a cada ano.

Não é injusto dizer que o longa passa a ser um dos mais antológicos da história do cinema, visto suas múltiplas qualidades. O roteiro é o ponto alto, com diálogos inspiradíssimos, apresentando algumas falas extremamente impactantes e memoráveis. A argumentação se baseia em pontos delicados, porém não recua em nenhum momento, todos os defeitos dos bastidores da sétima arte são expostos, denunciados e criticados, evidenciando uma realidade vil e pérfida de uma indústria que meramente visa lucro, desconsiderando os expoentes envolvidos. A lição que também se pode levar é o quão tênue é a linha do sucesso e do amargo esquecimento, passando de um lado para outro facilmente, desde que não se esteja seguindo a tendência predominante.

O elenco é magistral e ainda conta com participações de diretores e atores interpretando a si mesmo. Todos estão em perfeita sintonia e apresentam bons momentos, porém a grande estrela que eclipsa seus companheiros de cena é Gloria Swanson. Por coincidência, a atriz conquistou o auge no cinema mudo e em 50 já estava beirando ao esquecimento, mas ela não se intimida e agarra a oportunidade que lhe é dada com muita garra e vigor. Swanson fala diretamente para o público, cara-a-cara, clamando por atenção e reconhecimento, causando até simpatia por uma personagem tão questionável.

Billy Wilder reafirma-se como um diretor versátil e revolucionário, muito à frente de seu tempo, abordando uma metalinguagem no filme única, firmando pilares para o cinema que ainda são aproveitados e inspiradores. Seu trabalho dirigindo é transportador, tornando a experiência em uma mera mansão -onde maior parte se passa- em uma experiência sufocadora, envolvente e empática, sem apelar para proselitismo e nem similares.

Crepúsculo dos Deuses, portanto, passa a ser uma obra-prima do cinema, na qual sua temática encontra-se atual e constante, mostrando que o alarde de Billy é mais serio do que se pode imaginar. Um filme inspirador acima de tudo para as novas gerações, para que estas não se curvem a indústria e continuem criando a sua maneira. Assim, há como honrar melhor Norma Desmond?

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