Há certa complexidade no sentido da maternidade, temática constantemente evitada pelo cinema em si, sobretudo ao americano, que trabalha na exaltação superficial da figura materna, praticamente deixando de lado algumas questões fundamentais. Ainda nesse ano, tivemos a estréia da pérola romena “Instinto Materno”, não só sendo exceção a regra, como também servindo de uma sutil dissertação sobre o quão sufocante e até destrutivo pode ser o instinto que nomeia o longa. Pode ser considerado como complemento à esta narrativa e argumentação o canadense Mommy, chegado recentemente aos cinemas brasileiros, porém trocando a sutileza romena por um exagero praticamente escandaloso, conseguindo tocar nas obscuridades da relação mãe e filho, mesmas deixadas de lado pelos americanos e seu convencionalismo.

Vale ressaltar que não sou, nunca fui e dificilmente serei fã do diretor canadense Xavier Dolan, cineasta bastante superestimado, com uma estética exagerada e com aspectos vazios e carentes de argumentação mínima, refletindo minúscula visão de mundo. Contudo, a medida de seu amadurecimento, Dolan trabalhou de forma mais concisa a fim de se afirmar um realizador digno a ser levado a sério, podemos dizer que Mommy marca este momento, ainda demonstrando potencial, quando com boa argumentação, de fazer um filme realmente instigante. Num Canadá fictício, o Estado apresenta livre intervenção sob as famílias despreparadas em cuidar de seus filhos letais ao convívio social, tendo suas internacionais compulsórias sob condição o aceite da mãe. Neste contexto conhecemos a viúva desempregada Diane “Die” (Anne Dorval), necessitada a cuidar de seu problemático e inconstante filho Steve (Antoine-Olivier Pilon). Paralelamente, do outro lado da rua, Kyla (Suzanne Clément) é uma mãe extremamente deslocada em sua casa, vivendo em um ano sabático, encontra-se com problema de socialização e comunicação, mas é quebrado aos poucos ao se aproximar de Diane, partilhando dos problemas de sua vizinha e seu filho, iniciando uma relação de amizade e companheirismo, passando pelas mais variadas fases.

O longa romeno citado no início do texto era característico por seus diálogos sucintos e a expressividade dos atores que valiam por socos no estômago literalmente, já este segue o caminho contrário, com todo aquele maneirismo visual característico ao diretor, só que diferente de seus anteriores projetos, sua argumentação acompanha seu ritmo desenfreado, dissertando sobre os princípios da maternidade. A direção de Dolan pode ser prejudicial por ele forçar o expectador a entrar na onda do filme, a pensar como ele, quase que no tranco, mas é compensatório como ele consegue construir uma atmosfera sensitiva ao público, conseguindo nos fazer sentir como os personagens, sobretudo pelo uso primoroso da trilha sonora, bem empregada em praticamente todos os momentos, com canções que acrescentam significância ao momento destacado e aumentando a imersão no longa.

A complexidade da maternidade é vasta, sendo abordada de forma enérgica com ligeiro personalismo por parte do cineasta, retratando o “ser mãe” de forma singular, mostrando o qual sacrificante é tão estado, fazendo inúmeras concessões em detrimento a felicidade dos filhos, estes que não só dificilmente se colocam no lugar delas, como também abrem mão de poucas coisas, tendendo ao individualismo. Muitas vezes também os filhos tendem a não compreender a atitude dos pais, fugindo do clichê típico de pensar “no melhor para todos”, a argumentação de Dolan reflete como algumas atitudes tomadas podem ser extremamente dolorosa para as mães/pais, mas são pensadas e executadas no sentido de garantir melhores oportunidades aos filhos, as mesmas que elas não tiveram.

Outro aspecto predominante na argumentação é a questão da opressão, representada no personagem da vizinha Kyla, dos indivíduos sofrido nas famílias decorrente das convenções e conservadorismo sociais, forçando o uso de máscaras, não permitindo sermos quem realmente somos, nos sufocando constantemente e diminuindo nossas percepções e horizontes. Tal argumentação é muito bem representada pela metáfora visual na grandiosa sequência, ao som de ‘Experience’ de Ludovic Einaudi, no qual o enquadramento sai do modelo 1:1 para o convencional, num momento fundamental da trama, representando o horizonte e percepção reduzido do jovem Steve, adquirindo liberdade de pensar e agir, abrindo novas opções a sua existência. Referindo-se ao elenco, Anne Dorval não foge de alguns exageros e caricaturas, mas no conjunto da obra consegue ser a grande personificação da mãe moderna, que faz sacrifícios e não desiste de proporcionar o melhor para o filho, mesmo tendo que ferir a si. Suzanne Clément numa performance incrível, contida e grandiosamente expressiva, sendo uma soberba atriz. Já Antoine-Olivier se sai bem, porém tem um papel ingrato, pois é um personagem pouco empático, gera até um certo desgosto, mas se pararmos para pensar em como o jovem ator conseguiu torná-lo tão grotesco ao mesmo tempo que adorável, é um mérito a ser louvado.

Longe de “Mommy” ser uma ampla experiência para todos os públicos, aqueles que desgostam de Dolan e não tem paciência com sua estética saíram totalmente insatisfeitos, mas aos que forem de mente aberta e sem preconceitos irão se deparar com uma melancólica e instigante obra, abordando uma temática tão complexa e vasta, tende a nos deixar pensando e refletindo após a sessão, sobretudo aos filhos e seus conceitos sobre maternidade. Sem dúvidas, um debate que vale a pena ser refletido, com ou sem exageros.

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