Aquarius (2016); Direção: Kleber Mendonça Filho; Roteiro: Kleber Mendonça Filho; Elenco: Sonia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Carla Ribas; Duração: 145 minutos; Gênero: Drama; Produção: Emilie Lesclaux, Saïd Ben Saïd, Michel Merkt; País: Brasil, França; Distribuição: Vitrine Filmes; Estreia no Brasil: 01 de Setembro de 2016;

A última semana de agosto de 2016 foi conturbada para o cenário nacional, chega a ser irônico portanto a estréia de Aquarius, do pernambucano Kleber Mendonça Filho justamente um dia depois da destituição definitiva da presidenta Dilma Rousseff pelo senado federal da república. É difícil dissociar o processo de impeatchment (ou melhor, o GOLPE) contra Dilma devido, primeiramente, ao protesto feito pela equipe do filme no tapete vermelho no Festival de Cannes deste ano, contrário ao tom arbitrário do rito de impedimento, sobretudo por este ter sido conduzido por uma figura maquiavélica, o deputado atualmente afastado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

Protesto do elenco durante o Festival de Cannes 2016

Contudo, a ironia maior é pela justa essência do longa-metragem, extremamente humano e político. Em tempos tão difíceis, de arbitrariedade, autoritarismo e ilegalidade, resistir é o único caminho viável para não perecer perante injustiças. É isso que faz Clara (Sônia Braga), uma escritora aposentada, moradora do edifício Aquarius na praia de Boa Viagem, no Recife. Ela morou a vida toda, praticamente, no mesmo prédio sem a menor pretensão de se mudar, porém sua vida muda quando ela passa a ser a única moradora do edifício, tendo os outros apartamentos sido vendidos para a construtora Bonfim, que visa construir um condomínio de luxo. A pressão para Clara vender o apartamento é enorme, investidas do representante da construtora, dos próprios filhos. Para Clara basta resistir.

O filme pode ser considerado a síntese de muitos embates presentes no Brasil contemporâneo – o embate do Capital em detrimento ao bem coletivo, a resistência perante injustiças, a substituição do velho pelo novo, a desigualdade social ainda presente etc. O personagem de Humberto Carrão, o jovem engenheiro que visa derrubar o edifício do título, representa tudo aquilo que Clara se opõe, ele visa a tal “modernidade”, ela a preservação. O buraco é mais embaixo, vale tudo para ganhar? Onde fica o caráter?

Os anseios do Capital em prevalecer não impõem limites ao caráter, tão pouco a moral. Em dado momento vemos Clara visitando o túmulo de seu finado marido, ela se depara com funcionários do cemitério colhendo ossos de uma sepultura. Esta aí uma das alegorias que definem o longa. O que rege os indivíduos e a sociedade é a vontade de adquirir capital monetário, de fundos sem fim. Essa sociedade cada vez mais inescrupulosa, voluntaria ou involuntariamente, consequentemente insensível, substitui tudo e todos facilmente. O antigo é visto com saudosismo, celebrado como “vintage”, porém nunca preservado, por ser considerado “velho”, como diz a própria protagonista em determinado momento.

O soberbo roteiro de Kleber Mendonça Filho merece ser aplaudido por não ser condescendente com os erros da própria protagonista, por exemplo sua relação com uma ex-empregada duvidosa. Não normatiza pre-conceitos nem hipocrisias, mas também não as julga. Expõe para o público tirar suas próprias conclusões. Clara é uma personagem, portanto, recheada, completa, exuberante. O trabalho de Kleber em construí-la de forma tão plural a torna encantadora no modo que não só levamos ela para casa, como desejamos ser um pouco Clara. Sônia Braga tem um desempenho sublime, apaixonante, carrega Clara com um vigor único, é um deleite sublime. Não tenho palavras para descrever uma atuação tão plena, singular. Aplausos não são suficientes para Braga, patrimônio do Cinema. O argumento demonstra clamar não só a resistência política, também a feminina, a social. Clara é um personagem que resiste perante ao machismo explícito na sociedade que tenta diminuí-la, seja querendo despeja-la ou rejeita-la. Ela resiste, de cabeça erguida, da forma mais digna e inspiradora possível.

A trilha sonora é mais uma das linguagens narrativas usadas por Mendonça Filho para complementar a protagonista, além de ser uma seleção de alta qualidade de canções célebres, destaco a música que abre o filme: “Hoje”, do cantor Taiguara, lançada em 1969. Foi uma canção marcante por representar, junto a outros cantores e compositores da época, resistência contra a ditadura militar, que aplicou o golpe de 1964 contra o presidente legítimo João Goulart. Essa música é uma representação da argumentação do filme, por coincidência triste do destino ele estréia num momento deplorável da história do Brasil, com mais um governo ilegítimo chegando ao poder, prometendo arbitrariedade e autoritarismo, colocando nossa democracia na geladeira.

Se a música foi um dos símbolos de resistência naquele tempo, Aquarius é um dos símbolos desse nosso. Outra incrível coincidência foi proferida pela então presidenta Dilma em sua defesa no Senado Federal, ela comparou a democracia com uma árvore, sendo o impeatchment (leia-se GOLPE) uma tentativa de derruba-la aos poucos com fungos e cupins, deixando de lado o machado usado nos golpes anteriores. É uma alusão ao desfecho surpreendente do filme, que diz tudo ao que vivemos.

No final das contas, em tempos sombrios por vir, somos todos um pouco Clara. A democracia pode ser uma árvore ou um edifício,  não merece jamais ser tombada. É, sempre será, o lado certo da luta. Vale a pena resistir. Sem temer.

Aquarius – Trailer Legendado:

 

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